A noite ainda nao tinha terminado.


Saiu do carro. Era mais um, grande como tantos outros. Já lá ia o tempo em que reparava no carro, na marca, no seu interior. Agora era-lhe indiferente. Era trabalho.
Saiu e ainda sussurrou um “Obrigada”. Era o hábito. Agradecia, mas raramente o faziam a ela. Ela agradecia o dinheiro que trazia no bolso mas quem lhe agradecia o prazer? Poucos, muito poucos.
Sentou-se no passeio. Por hoje chegava, queria ir para casa, mas ela queria mais, queria mais dinheiro. Já cá não ia estar muito tempo e tinha o seu menino. Tinha de ganhar a maior quantidade possível de dinheiro.
O homem tinha sido simpático ao deixa-la onde a tinha requisitado. Muitos não faziam isso. Depois do serviço, qual objecto, deixavam-na onde eles queriam. Ela não se importava, estava habituada. Um hábito de anos, desde que tinha chegado a Lisboa.
Ali sentada, puxou de um cigarro e assim ficou. Calma no exterior mas num turbilhão interno.
Lembrou-se dos tempos em que era uma menina feliz, tão feliz. As brincadeiras com a sua irmã, o ir com o pai à pesca, as ajudas que dava à mãe na cozinha, os seus amiguinhos da escola e do bairro, as férias na praia em Espinho... Era tão feliz, tanto quanto uma criança pode ser.
Até aquele dia. O dia em que, aos 8 anos, ficou sozinha. O dia em que os pais queridos e a sua irmã desapareceram para sempre. Um acidente de carro ceifou-lhes a vida e hoje era ela que passava as noites a entrar e a sair de carros. Mas nunca, nunca mais tinha entrada num carro daqueles, igual ao malfadado que lhe roubou os seus mais amados. Num desses recusava sempre entrar, fosse por que dinheiro fosse.
Ali sentada lembrou-se da tia. A tia com quem foi viver aos 8 anos. A tia que a tirou da escola aos 14 anos. E ela era a melhor aluna da turma. E ela gostava tanto de andar na escola. E ela que queria ser “doutora”. A tia que, nunca percebeu porquê, a culpava do que havia acontecido naquela noite. A tia tinha perdido a sua irmã, cunhado e sobrinha mas ela não tinha culpa disso. Era o que restava dos quatro, era a outra sobrinha. Não merecia todo o amor, nem que fosse por isso? A tia que nunca lhe deu oportunidade, por muito obediente e educada que fosse. A tia que a olhava, tantas vezes, com um olhar visceral. A tia que sabia bem o que o tio lhe fazia e fingia que nada se passava. A tia que a pôs fora de casa quando ela, um dia, entrou na cozinha a chorar com o tio, nervoso, a aparecer logo atrás de si.
Lembrou-se dos seus 16 anos. Não estudava, não trabalhava, mas sonhava com isso. Com isso e com o dia do seu casamento. O dia em que ia casar com o seu principe encantado. O dia em que ia vestir o vestido mais lindo deste mundo. O dia que iniciaria a vida mais linda deste mundo. Mas isso só nos contos de fadas que a mãe lhe contava, sabia-o desde essa idade. Aos 16 anos largou a aldeia, onde prometeu a si mesma nunca mais voltar, e veio para a cidade.
Lembrou-se da Sónia, a sua primeira amiga na cidade e que a encaminhou para esta vida.
Lembrou-se dos medos, dos terrores, das dores, do sangue que, muitas vezes, a acompanhavam ao quarto em casa da Sónia.
E o seu menino... O menino que não desejou aos 16 mas que amava mais do que tudo aos 23. O menino que lhe estragou o negócio pouco depois de chegar a Lisboa mas que depois se tornou a principal razão desse mesmo.
O menino sem pai que a tinha a ela e para quem ela queria o melhor futuro do mundo. Um futuro do qual não iria fazer parte. Em adulto, quando fosse “doutor”, iria lembrar-se dela?
O menino que estava em casa a dormir pensando que a mãe estava a limpar escritórios de senhores importantes, como ele iria ser um dia.
O menino para quem ela tinha de juntar a maior quantidade de dinheiro possível. E, por isso, não podia ir já para junto dele.
O que viria a ser dele quando ela partisse? Com quem iria ficar? Seria adoptado? Quem é que quereria adoptar um menino de 6 aninhos? Era um anjinho, mas quem é que quereria saber disso?
Levantou a blusa e olhou para aquele sinal. Um sinal que lhe tinha destruído a vida. Sempre teve colegas com falta de um ou outro dente, colegas seropositivas ou com outros problemas de saúde, mais ou menos graves, e ela nada, nada daquilo. Sempre saudável. Ela que passava o tempo a fazer testes, exames, análises. Jamais o filho poderia apanhar alguma porcaria.
E agora aquele sinal, aquele sinal que a iria afastar do seu menino para sempre.
Ela que, em pequena, adorava praia. Ela que passava horas a brincar com a irmã na água. Ela que corria para a mãe para comer qualquer coisa rápida e voltava para o mar. Ela que, desde há anos, desde que veio para a cidade, mal punha um pé na areia.
Todos os anos, quando o calor apertava, chegava a ter vergonha. Vergonha quando ia buscar o seu menino aos Tempos Livres. Vergonha porque via os outros pais a mostrar os fantásticos bronzes e ela ali branca que nem cal. Trabalhava à noite e de dia a praia não era um objectivo. Tinha a casa para arrumar, roupa para passar, o seu menino com quem estar mal chegasse da escola.
Os outros morenos das horas intermináveis de sol e ela tão branca. Os outros saudáveis e ela com aquele sinal. Um sinal que se tinha espalhado por si adentro.
“Que Deus é este? Deus esqueceu-se de gente como eu!” Pensou.
Ali sentada sentiu-se mal porque não deixava o seu menino ir à praia e o enchia de protector solar por toda a carinha, bracinhos e perninhas antes de saírem de casa. E as crianças gostam tanto de praia. Ela gostava tanto. Iria ele perdoa-la por isso?
Perguntou as horas a uma colega que estava mais afastada. Quatro e vinte. Ainda faltava tanto para chegar a casa e abraçar o seu menino. Dormir um bocadinho abraçada a ele e depois levantar-se para lhe aquecer o leitinho, preparar os cereais e o lanchinho da escola.
Quantas mais vezes iria fazer aquilo? Quantas mais vezes o iria abraçar? Seriam os abraços dos próximos tão sentidos quanto os dela? Como o iriam tratar? Iriam com ele à praia. “Tenham cuidado, por favor, tenham cuidado”, pensou.
Voltou a olhar o sinal que tinha no braço. Um sinal há tempos imperceptível e agora um criminoso que a ia afastar do seu menino, para sempre.
Iria o seu menino ficar sozinho aos 8 anos também?
Não podia chorar. Ia borrar toda a cara e a noite ainda não tinha terminado.
Levantou-se. Ajeitou a saia, puxou de um outro cigarro. Ela ainda estava viva. O seu menino ia ser “doutor”.

6 comentários:

Anónimo disse...

Tu és único, não és?

Lindíssimo. Fica-se a olhar para as coisas de forma diferente.

Anónimo disse...

A vida é mesmo muito injusta.
O que a perda de alguém, de uma familia, pode alterar a vida de uma pessoa.
E quando menos esperava está prestas a perder a sua actual familia, o seu filho, e a sua vida de vez.

Anónimo disse...

Acabo um dia de trabalho e leio este texto.
Apetece-me sair daqui e abraçar toda a gente que amo.
Obrigado por este texto, mexeu muito comigo. Faz-me ver que tenho todos os motivos para ser feliz.

Anónimo disse...

O rui e a ana já disseram parte do que seria suposto. A verdade é que não podemos fazer juízos precipitados e infundados, baseados apenas em valores tão discutíveis por vezes ...na realidade há uma razão para aquilo que muitas vezes reprovamos ... ou várias. Acima de tudo, esta é uma estória de um tremendo desamparo e de uma falta de amor imensa misturada com um fortíssimo amor ao mesmo tempo.E dizes muito bem ... Deus não pareceu existir para ela, não tem de lhe agradecer ... fez-me lembrar aquele livro do Paulo Coelho "Onze Minutos" ... acho?! pelo tema da prostituição claro...

Anónimo disse...

Muito triste...

Anónimo disse...

Há vidas que parece que nos ultrapassam e quase tememos saber delas.
Preferimos nem pensar.