Pois então o dia 17 dificilmente poderia começar melhor. E não, não foi por ter iniciado o ano lectivo, não. Não foi porque mais tarde dei comigo a mostrar a escola, que ainda mal conheço, a dois alunos quase cegos, tão nervosos de pânico pelo confronto com um mundo novo, não. Não foi por ter chegado à escola mais de 1 hora antes de entrar na sala de aula, meia hora antes da escola sequer abrir. Tudo para escapar ao malfadado trânsito.
Começou logo pouco após a meia-noite. Estava a dar na televisão o maravilhoso Brokeback Mountain. Não vi do início mas não resisti a ficar no sofá a ver até ao fim. Tinha de me levantar dali a 5 horas, tenho o filme em casa, mas ainda assim ali fiquei a ver a história de amor daqueles dois homens rudes. Como sempre que vejo este filme, as lágrimas foram uma presença. Mais do que isso, dei comigo a chorar compulsivamente. E ali, sozinho, podia fazê-lo.
Enfim, lá me fui deitar. Ainda os lençóis não estavam quentes e começo a ouvir um barulho que nem sei bem descrever. Uma espécie de suplicante miar gritado. O Bruno não estava na cama, como sempre é de seu costume.
Levantei-me num milésimo de segundo e corri para a cozinha. Lá estava a minha Camilinha a andar de um lado para o outro junto à liteira das necessidades. Assim que me viu olhou-me com o ar mais aflito que um felino pode mostrar. Algo se passava. Havia sangue no chão, sangue misturado com alguma urina. Não era muito, mas para um animal tão pequeno, era certamente.
Peguei na transportadora, meti a pequenina lá dentro e “voei” para o Hospital Veterinário do Restelo que, em tempos me aliviou da dor de julgar o meu Bruninho cego. Era ainda tão pequenino.
Cheguei ao balcão, expliquei o que se passava e esperei na sala que ali está para o efeito. Era eu, a Camila (que ora lançava um grito idêntico ao que tinha produzido todo o caminho, ora ficava em silêncio amedrontado), uma senhora de meia idade com o seu gato e um casal de dois homens com o seu cão.
Era só o que me faltava, um casal de dois homens. E logo agora que os casais, sobretudo estes, me andavam a irritar tanto. Ai estavam a fingir serem amigos, claro. Um, o seu cão e o amigo, claro. Mas eu, imediatamente percebi que eram mais que isso. Havia ali uma preocupação mútua pelo cão que não se aguentava bem de pé.
Apeteceu-me chorar. Porra! Dia 17, praticamente não iria dormir, esperava-o horas de trânsito ou, para evitá-lo, teria de ir tão cedo para a escola que lá chegaria mais de uma hora antes desta abrir, e hoje só entrava às 9 horas. Ia começar o ano lectivo, tinha tanto para fazer na escola, a sua menina estava mal, não sabia o que era, ia pagar uma fortuna quando já pouco dinheiro tinha até receber o ordenado, ali estava em frente aqueles dois e, ainda por cima, estava ali sozinho. Sozinho tinha ali chegado, aflito por vê-la aflita. Sozinho dali ia sair sem saber como ela estaria. E à noite, à noite parece que quando a solidão bate, bate com mais força. Se estamos na rua é porque está escuro, se estamos num recinto fechado como aquele, é porque a luminosidade artificial nos mostra que é noite.
Lá entrei. Não demorou muito mas pareceu que sim. Lá descobriram que a menina está com uma infecção urinária. Lá lhe deram uma injecção. Lá lhe meteram um tubo para drenar a urina que saiu em quantidade industrial misturada com sangue. Ela estava exausta ali estendida, tão exausta que ali ficou ainda mais uma hora a soro.
Quando saí do hospital vi o casal a entrar no carro com o cão. Boa, tinha de vê-los outra vez. Estavam mais sorridentes, deviam ter ouvido boas notícias, mas, ainda assim, percebi que um deles estava irritado. Percebi que, dentro do carro, estavam a discutir. Um falava e esbracejava e o outro ora olhava para o cão que estava no banco de trás, ora olhava para a janela do seu lado. Discussões entre casais, típico. E o que seria melhor? Tê-las ou estar ali sozinho, às 4 e tal da manhã?
A Camila estava deitada na transportadora, estava tão cansadinha. Agora era dar-lhe a medicação e estar atento para ver se ela conseguia urinar nos próximos dias. Caso contrario, lá irei outra vez para o hospital.
E como é que poderia ver isso se agora era chegar a casa, tomar um banho e voltar à estrada fazendo quase todo o mesmo caminho em sentido contrário? Podia dormir um bocado, ficar em casa a cuidar da menina, mas era o primeiro dia de aulas, os miúdos invisuais precisavam dele, ele tinha prometido ajudá-los, estar com eles neste dia. E ainda por cima, caso faltasse, ia perder o dia no centro de saúde na esperança, que poderia ser vã, de um qualquer médico me passar um atestado por uma doença que não tenho. Invenções extraordinárias da senhora Ministra da Educação.
Já em casa, pronto para voltar a sair, lá dei um beijinho à princesinha, falei com ela deitada de olhinhos fechados e alertei o menino Bruno para que tivesse juízo, muito juízo e não importunasse a Camilinha.
Hoje, dia 17, precisei tanto de alguém. Alguém que me ajudasse, alguém que ali estivesse, alguém que me apoiasse. Por isso aquele casal ainda me irritou mais. Há coisas que ainda não consigo fazer sozinho. Consigo, até consigo, tal como o fiz, mas acompanhado de uma desconfortável dor apertada no peito que não consegui aniquilar.
Podia ser pior. Lembrei-me do filme, da forma como aquele homem abraçou aquelas camisas, da forma como saiu daquela casa, da forma como disse aquelas palavras. O sofrimento de saber morta a pessoa que tanto se ama. Podia ser bem pior.
Portanto, nada melhor do que abrir as janelas da frente do carro, acelerar na auto-estrada, ser inundado de vento por todo o lado e ouvir uma música alegre para animar o caminho. "The Magic Position" do Patrick Wolf com direito a palmas e tudo. Para animar, para esquecer um bocado, para manter os olhos abertos.
O dia 17 ia ser longo, estava cheio de sono, queria que fosse curto para voltar a casa, dormir alguma coisa e, sobretudo, ver como estava a minha menina.
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9 comentários:
Rapaz, infelizmente o teu dia foi de novo de doidos.
Mas olha, mesmo sendo só amigo, se precisares diz-me qualquer coisa, estamos aqui relativamente perto e acho que te posso dar algum apoio ou ajuda, basta me pedires ou dizeres algo. Quanto ao filme, estavas fisicamente sozinho, mas virtualmente lá iamos comentando as cenas. Finalmente, a ver se a gente amanhã se vê. Tenho comigo uma surpresa desde sexta-feira que te quero dar. Não é nada demais, mas espero que pelo menos te ponha mais bem disposto.
Um beijinho muito bom, descansa muito durante a noite de hoje e espero sinceramente que a pequena Camila melhore.
Podias-me ter ligado. Eu já estava certamente a dormir mas ia contigo imediatamente. Era uma oportunidade para conhecer a Camila e de te dar apoio.
E vamos tomar o copo ou não? Para comemorar as melhoras da Camila.
Ou seja ... mais uma vez não descansaste ... e deves ter chegado estoirado a casa, vais mesmo ter de alterar os teus hábitos, tens de descansar, a tua vida vale mais do que o sistema de ensino em Portugal, lembra-te dos professores com cancro a quem não foi dada reforma antecipada. Lembra-te que possivelmente deram o melhor de si, nem que fosse um só deles a fazê-lo, já seria um crime sem perdão ... no final o prémio da dedicação é este ... morte a trabalhar. É lindo não é?! E louvável ... foda-se esta merda de um cabrão.
Claro que neste caso a razão é compreensível, mas não podes deitar-te tarde como habitualmente ... espero que a Camila melhore ... beijocas grandes
Também vi o brokeback mountain ... e por acaso escrevi um post ... pareço que estamos sempre em sintonia
Oh meu amor, que chatices tens tu e que te preocupam tanto.
Nem uma coisa boa numa noite inteira quado devias estar a dormir serenamente.
As melhoras à gatinha. Está melhor?
Oh meu amor, que chatices tens tu e que te preocupam tanto.
Nem uma coisa boa numa noite inteira quado devias estar a dormir serenamente.
As melhoras à gatinha. Está melhor?
E o resto do dia como foi? Melhor ao menos?
Mas acredita q há coisas bem piores.
:( espero q a menina esteja melhorzinha.
E o gatinho dono e a gatinha estão melhores?
Espero que sim.
Tanta coisa por causa de uma gata.
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