- Abre os olhos... Abre os olhos.
Abriu. Sabia que estava deitado. Era duro. Sem olhar percebeu que estava deitado numa pedra, uma pedra grande e lisa. Doía-lhe ligeiramente o corpo mas nada de muito incomodativo. Os seus olhos viam o que acima dele estava. Era o céu. O céu escuro enfeitado por algumas de estrelas. Poucas. Uma aqui, outra além. Sentiu-se bem e a aragem ligeira ajudava a isso.
- Abre os olhos.
Sentou-se mas não viu ninguém. Apenas escuro à sua volta, muito escuro. Apenas o céu estava pontilhado de algumas luzes.
- Onde estou?
- Estás aqui.
- Aqui onde?
- Estás acordado é o que agora importa.
- Quem é que está a falar?
Olhou à volta e não viu ninguém. Estava ali sozinho. Apenas umas latas de tinta e pincéis. Para que queria ele aquilo? Quem teria posto aquilo ali?
Passaram dez minutos, vinte, meia hora e já nem a brisa sentia. Nem brisa, nem voz. Apenas ele, o escuro, a pedra grande lisa, o céu pouco estrelado e um horizonte escuro no qual não se aventurava porque nada via além de alguns metros.
Voltou a deitar-se na pedra. Devia estar a dormir e aquilo era um sonho. Certamente voltaria a adormecer e a acordar na sua cama.
Antes de fechar os olhos pareceu-lhe que as estrelas se moviam. Fechou os olhos várias vezes e não estava enganado. As estrelas estavam a mover-se e não tão lentamente quanto isso. Foram-se juntando a pares, a três, em grupos mais ou menos pequenos, todas em direcção a pontos específicos. Alguns minutos depois as estrelas estavam alinhadas em círculo em torno de um ponto tão escuro quanto todo o céu.
Acima de si encontrava-se agora um círculo com aro dourado cada vez mais intenso, tão intenso que começou a tornar-se branco. Voltou a esfregar os olhos. Sim, era branco e estava a descer.
A descer? Estariam as estrelas a cair em cima de si? Em vez disso começou a perceber que as estrelas estavam a descer, na vertical, mas em forma de listas em que se tinham transformado. Parecia-lhe que as listas desciam lentamente. Mas viu que cresciam cada vez mais e mais depressa.
Em poucos minutos viu-se rodeado de listas brancas como que estacas de madeira pintadas de branco. Aproximou-se, tocou numa, depois noutra e noutra. Eram duras. Não percebia que material era aquele mas era duro ao ponto de não conseguir sequer abaná-lo. Não se movia uma, nem outra, nem outra. E ele não conseguia passar por entre duas que fossem. Umas eram mais largas, mais grossas, mais espaçadas entre si mas nenhuma se movia e ele não conseguia passar por brecha alguma.
- Sim, estás preso.
- Preso?
- Sim, não vês que sim?
Olhou em volta e viu que a voz tinha razão. Estava preso, rodeado por listas brancas que faziam uma espécie de grades. Parecia que estava numa gaiola branca com tudo negro em seu redor. Até o céu abandonado pelas estrelas estava, agora, absolutamente escuro.
- E agora? O que é que eu faço?
- Agora? Agora estás perante a vida como ela é.
- O quê? A vida? Preto e branco?
- Seja! Tu é que decides.
- Decido? O que vejo é isto. A vida é negra com algumas coisas brancas?
- Se assim o quiseres, é. Mas para isso tens aí as latas de tinta com várias cores. E com essas podes fazer outras.
- E para que quero eu as latas de tinta se estou aqui preso?
- E preferes estar preso na vida negra com grades brancas ou pintá-las de uma cor, duas cores, três ou aquelas que entenderes? Vá, tens ali pincéis.
- É suposto pintar estas barras?
- Se tu quiseres, sim. Senão deixa-te estar assim. Tu e a tua vida preta e branca.
- Não. Vou pintar. Aqui sentado é que não vou a lado nenhum, pois não? Já vi que tenho de participar neste jogo, não é?
- Sim, a vida é um jogo. Ou participamos ou não. Ou te levantas e fazes alguma coisa ou ficas aí sentado nessa pedra. Tu é que sabes o que queres fazer. E se participares, como queres participar. A decisão é tua. A vida existe, não é fácil e tu fazes dela o que entenderes.
- Está bem. Vou pintar, então.
Dirigiu-se a uma lata de tinta, a maior de todas, várias vezes maior do que as outras latas.
- O quê? Vais pintar as listas de preto? Queres mesmo fazer isso? Uma vida negra, escura? Não percebes que tens aí tantas cores. Tens a possibilidade de usá-las e como quiseres. Para isso não será melhor então deixares as listas brancas como estão?
- Não. Primeiro de preto, todas de preto.
- Primeiro? Mas pensas depois pintar de outra cor?
- De outra cor ou outras cores, logo vejo. Tudo a seu tempo.
- O quê? Então porque não pintas logo todas de vermelho, ou verde, ou amarelo, ou cada uma de uma cor?
- E se pintar? Pinto cada uma de uma cor e depois?
- Onde queres chegar?
- Depois resta-me o quê? Pinto tudo às cores e depois? Depois ficam pintadas e acaba-se tudo. Já não há mais nada a fazer.
- Há, há. Ficas com uma vida cheia de cores, todo o tipo de cores e até podes trocar as cores se quiseres. Uma lista azul podes pintá-la depois de laranja. É essa a beleza da vida. Não achas que é maravilhoso? Não percebes porque estás aqui?
- Já percebi o joguinho. E já disse o que vou fazer.
- Mas tudo de preto? Sim, há mais tinta, é mais fácil não se gastar. Por isso foi aí posta uma lata muito maior. Mas é isso que queres? Tens aqui a possibilidade de fazer melhor.
- Vou pintar de preto, tudo de preto.
- Mas porquê?
- Primeiro pinto tudo de preto e fico com tudo preto à minha volta. Fica aqui tanto negro que a terra se confunde com o céu e o céu confunde-se com as barras. Assim, é como se elas não existissem. Como se não estivesse enclausurado nesta gaiola. Olho à volta e estou num universo infinito. Sinto-me novamente liberto de grades.
- Entendo. Mas a verdade é que as barras estão cá e não sais delas.
- Sim, já vi que sim.
- Mas depois quando já não estiver cansado, já não me doer o braço de pintar, quando tiver dormido, quando o negro me cansar, pego noutra lata, noutra cor e pinto.
- Mas porque é que não pintas logo de uma vez? Seria mais rápido, cansavas-te menos e ficava logo terminado.
- Se estou aqui, se esta é a minha vida, porquê a pressa? Vou pintar logo tudo e não fica mais nada por fazer? Não. Agora pinto de preto e aproveito isso, depois logo pinto de outra cor e com o pincel que me apetecer.
- Outra? Só uma? E qual?
- Não sei. Fazes perguntas difíceis. Ou uma, ou duas, ou as que me apetecer na altura. Com um, ou dois pincéis, o que for. Se eu fizer tudo agora, se eu decidir tudo agora, o que é que fica para fazer e viver no futuro?
- Então... bom trabalho.
- Obrigado. Já vais?
- Estarei por aqui.
Olhou para os pincéis. Escolheu um bem largo. Abriu a enorme lata de tinta preta. Molhou o pincel na tinta e preparou-se para fazer desaparecer aquelas grades que o rodeavam.
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11 comentários:
Sabes tu és de facto um artista. Pintas e escreves como tal.
Quanto ao conto, por um lado dou razão. Para quê gastar já as paletes todas se se tem a vida toda para o fazer. A vida deve-se viver aos poucos e não a correr. Mas por outro, o preto para disfarçar a "prisão" e tentar confundi-la, dá-me uma certa ideia de conformismo. Julgo que não se deve desistir assim e se as outras tintas estavam lá, eram para dar uma outra cor à vida. Quem sabe se isso não destruiria a prisão, a tal rotina que rodeia o dia a dia de cada um de nós?
é um conto com um simbolismo interessante, apesar de um pouco longo ... gostei da ideia ... hoje estou muito deprimido ...
Não concordo muito thetalesmaker.
Ele virou o jogo ao contrário e não fez o que era previsto ser testado. Usou o preto exactamente para aproveitar o q ele trazia, dar-lhe esperança, saber que há mais pela frente, algo mais a fazer.
E ele sabia que as outras cores estavam lá e que ia utiliza-las.
Em vez de usar só o preto ( epor isso é q estava lá uma lata maior, para cair nessa tentação) para se acomodar ao escuro, ele usou-o noutro sentido a saber que ainda tinha lá as outras cores para usar como quisesse.
Eu entendo assim mas é um texto q dá muito q pensar e pode ter várias interpretacões.
Sim João, mas em parte é isso mesmo. Já reparaste que o nosso amigo pinta e escreve coisas que nos fazem pensar e as quais podem ter várias interpretações.
E claro, possivelmente, aliás o mais provável, é a minha interpretação estar errada.
Mas gosto deste aspecto dele naquilo que ele faz.
O rapaz tem um dom, é dotado.
Espero que continue assim a nos surpreender.
A tua imaginação é genial.
Estou sem palavras e tanto havia a dizer sobre este texto.
Muitas estrelas para este texto.
Concordo com a fátima. Excelente mesmo.
Adoro-te, adoro-te sem limites.
A tua cabeça é uma palete de cores e pinta maravilhas como estas.
Parabéns.
Tenho mesmo que vir aqui mais vezes. Tu transportas-me para um mundo imaginário desconhecido.
PARABENS e atrevo-me a dizer mesmo OBRIGADO
Espectacular.
Um texto longo e chato bom para bocejar e adormecer. Qual é a lógica disto, alguém me explica?
O teu blog dá-me vontade de rir. Deveria concorrer ao blog mais cómico do ano.
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