Há dois anos que ali trabalhava e há muitos mais que o mesmo se passava. Sabia-o. Tinham-lhe dito. A nova empregada moldava achava aquilo impressionante. Quem não acharia?
Àquela hora, àquela precisa hora já sabia que, olhando para a porta, entraria o Sr. Augusto. Alto, magro, com os seus óculos de lentes sempre muito bem limpas, a barbicha branca milimetricamente aparada e a roupa clássica sempre de corte perfeito. Uma figura de aspecto impecável. Fazia-lhe lembrar alguém da aristocracia e, por isso, com ele a atenção era redobrada, quase denotando um respeito extremo. Os que ali costumavam estar de manhã sentiam o mesmo, era nítido. Se um ou outro trabalhador das obras falava mais alto logo tão cedo, baixava o tom como que se de um quase rei ali chegasse. Era sempre assim. Olhar para aqueles homens e olhar para aquele senhor era como que comparar um castelo, onde ele poderia viver, a um andaime, onde eles certamente trabalhavam.
Tirava o chapéu à porta, ajeitava o cabelo ralo, entrava e dizia um “Bom dia” baixo mas grave. Sorria a uma ou outra criança que por ali estava e dirigia-se à mesa do costume que estava quase sempre desocupada. Se algum novato do café a ocupasse ele não se sentava noutra. Ficava de pé, estático, e esperava pelo “seu” lugar.
Ele tentava despachar os ocupantes o mais rapidamente possível para que o “Senhor Augusto” se pudesse sentar. Aquele era o seu cadeirão.
Como de costume, o senhor Augusto sentou-se. Colocou uma perna sobre a outra, ajeitou a gravata, o casaco que nunca tirava e já ele lá estava para atendê-lo.
Uma torrada não muito queimada, só com um calorzinho,, e um chá. Desta vez era chá.
É sabido que em todos os cafés, pela manhã, é comum os habituais clientes pedirem sempre o mesmo. Ele sabia bem o que cada um queria e já nem precisava perguntar. Mas ao senhor Augusto tinha de perguntar sempre se era chá ou galão, que segundo o senhor Augusto era café com leite. Nunca o ouviu dizer a palavra “galão”.
O senhor Augusto tomou o seu pequeno almoço e, claro, fumou o seu cigarro. Não falava com ninguém. Limitava-se a olhar para o vazio ou a olhar para este ou aquele cliente que ia entrando ou saindo.
Desta vez teve a coragem que há meses queria ter. Dirigiu-se à mesa com o troco e, nervoso, falou.
- Peço imensa desculpa, Senhor Augusto. Eu sei que não é da minha conta, mas... porque é que umas vezes pede chá, como hoje, e outras um café com leite? Desculpe.
- Não tem nada que pedir desculpas, meu rapaz. (O senhor Augusto esboçou um riso) Por mim, o ideal seria que me trouxesse uma ou outra coisa sem ter de me perguntar. Sabe, é que de manhã sou de poucas falas e ainda estou meio a dormir.
- Ah, peço desculpa se o incomodo, então. Desculpe.
- Não, nada disso. Já lhe disse para não se preocupar.
- Pois, mas como é que eu posso saber se quer café com leite ou galão se ora pede um ou outro? Não sei o que o senhor quer a cada dia.
- Eu também não sei. Digo ao calhas.
- Ao calhas? Bem, está bem. O senhor é que sabe. Tenha um bom dia, senhor Augusto.
O Senhor Augusto sorriu para ele como que de um completo ignorante ele se tratasse.
Voltou ao balcão onde a coleguinha moldava atendia clientes mas olhava de esguelha para ele, expectante.
Ele não entendia. Ao calhas? Será que amanhã lhe deveria levar café com leite ou chá sem lhe perguntar? Arriscaria? Que homem estranho. Reformado há tantos anos, o que o levaria a entrar ali todos os dias às 7 e 5 em ponto como se fosse trabalhar todos os dias, quando se sabia que ia voltar para casa ou, à quinta-feira, para um banco de jardim ler o seu jornal?
Nisto, o senhor Augusto fez algo de diferente. Em vez de se dirigir em direcção à porta, dirigiu-se ao balcão e fez-lhe um sinal com o dedo.
Ele aproximou-se, largando disfarçadamente em cima do microondas, um pano de cozinha molhado que tinha na mão.
- Senhor Augusto, precisa de alguma coisa? Diga, diga.
- Sabe, meu jovem, são vícios. Era assim que a minha Laura fazia. Todas as manhãs era assim. Era uma coisa nossa que surgiu logo nos primeiros tempos de casados. Depois do banho chegava à cozinha e nunca sabia se ela tinha feito chá ou café com leite. No início riamo-nos muito com aquilo. Isto depois de até nos termos chateado também algumas vezes. Ela adorava ver a minha cara de surpresa quando olhava para a mesa. Era uma brincadeira que ficou. Deixei de me irritar, deixei de rir, ela também. Passou a ser algo nosso, algo de todas as manhãs. E depois de ela partir fica esta mania e ficará até eu me juntar a ela. Enquanto não vou, sabe, pego nestas coisas para ficar mais juntinho à minha Laura. São doidices parvas de um velho como eu. Os jovens não entendem.
- Não diga isso...
- Digo, filho, digo. Continue o seu trabalho e até amanhã... Ah, só mais uma coisa, estive ali a pensar e amanhã volte a perguntar-me se quero chá ou café com leite. Pergunte-me sempre. Quando eu deixar de aqui vir saberá que já não precisarei de responder o que quero. A minha Laura decide.
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10 comentários:
Rapaz sabes escrever contos liiiiindos!!!
Qunato às surpresas é mesmo isso, são algo que nos dá mais uma alegria à vida, principalmente quando essa suspresa é partilhada com alguém de quem se gosta. São momentos únicos.
Beijinho bom e fica bem
Apetecia-me dar um abraço ao "Senhor Augusto" e um enorme beijo a ti.
Tu és qq coisa de... tu sabes o que eu acho.
Lindo, o final é lindo.
Adorei ... vinte valores à tua criatividade ...o desfecho é emotivo ... um conto simplesmente belo.
Concordo com o Brama, 20 pontos de 0 a 19.
E por causa de ti ando a olhar para as pessoas de maneira diferente.
amanhã já sei q vou procurar um senhor Augusto no café onde vou quase todas as manhãs.
Lindo, lindo, lindo. E que tal escreveres contos e mandar para editoras? És um talento desperdiçado.
Tu não és normal mm. Decoraste uma casa linda, és giro giro e giro, escreves muito bem, fotografas muito bem. O que é que fazes mais bem feito?
Irra q tu até metes raiva. lol Estou a brincar.
Perfeito.
Anónimo, a mim cheira-me que quem desdenha, quer comprar.
:-P
Grande chatice de história. Como se estas coisas fossem possíveis.
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