Apanhar cacos

O jantar de aniversário tinha sido maravilhoso. Só podia, com tanto empenho, cuidado e dedicação na ala denominada de "criadagem". Uma animação tão boa naquela casa. Uns a cortar, uns a lavar, uns a bater, tudo por entre sorrisos, galhofa, cigarros e cervejas. Tudo para o manjar delicioso. O pessoal ia chegando e juntava-se ao cenário. A aniversariante estava com o olhar brilhante. Aquele olhar brilhante que se tem quando se está a amar um momento.

Ele, entre a ajuda na cozinha, ia percorrendo as restantes divisões da casa, colando folhas brancas com dizeres que marcaram as férias, com dizeres relativos à sua "sister" que fazia a sua idade. Escrevia, pintava, usando as cores das múltiplas canetas que recheavam o estojo de uma criança. Mas ali todos pareciam crianças. Estava-se tão bem.

Escrevia o que queria e o que lhe iam sugerindo. A "bebé" da noite estava proíbida de sair da ala da criadagem. Quando teve ordem de soltura foi lindo. Já meia bebida, parecia uma criança no meio dos outros, crianças também.
Ele, de máquina em riste, mal conseguia captar os risos, os abraços, os saltos, as corridinhas. As fotografias estavam uma desgraça, mas o momento era o que contava.

Olhava para cada rosto e via alegria. E isso deixava-o alegre. Ainda mais do que aquando dos preparativos.
E estava tudo tão delicioso. Tudo, mas aquilo que conseguiu provar, porque, entretanto, o seu estômago mostrou-lhe uma dor que já lhe era tão familiar. Uma dor que tentou aguentar o mais possível. O suor já começava a escorrer pela cara, o corpo estava já a arder, falar já não conseguia. Tinha de aguentar. Eram os anos da sua querida "sister". Mas a vesícula venceu e enquanto na varanda fumavam antes das aguardadas sobremesas, a sobremesa dele foi outra. Dirigir-se à casa-de-banho e fazer desta a sua companhia por uma hora ou mais.
Ainda pensou: "Se não fosse isto tão penoso e horrível, devia começar a fotografar as casas-de-banho que o amparam quando tem estas malditas crises.
Vomitou, vomitou, vomitou, transpirou, caíam-lhe as lágrimas do esforço e dor. Tinha de ser rápido, não podia estragar a noite da sua amiga, não podia. Nínguém podia desconfiar. Tinha de vomitar tudo, tudo. Sabia que só assim iria passar e poder voltar para a festa.
Mas desconfiaram, claro. Já estava ali fechado há demasiado tempo. Além porta, uma voz falou com ele mas, não se convencendo, pouco depois abriu-a. Duas figuras entraram para o confortar, para o ajudar. Ali estava ele, completamente vermelho, de rosto inchado, olhos raiados, roupa completamente ensopada, sendado na sanita, por já não ter forças nas pernas. Sentia-se fraco, desidratado, com o corpo todo a tremer.
Sorriu aos seus sorrisos maternais. Sentia-se um menino pequeno a precisar da sua mãe. Mas não queria ninguém ali. Era ele e a sua confidente casa-de-banho.
Trocaram palavras, ele quase sem conseguir ouvir ou balbuciar. Veio um chá preto para ajudar a acalmar o estômago. Ajudou, se a ajuda era vomitar.
Estava de joelhos, de pé já não tinha forças para se aguentar.
Lá passou. Mas desta vez tinha sido tal a tormenta que passou grande parte do resto da noite estendido no sofá. Lá se explicou a quem não sabia bem o que se passava. Lá foi ouvindo, participando. Lá se mostrou mais bem disposto e até estava. Ainda tentou um pézinho de dança. Mas depois de arejar na varanda e de ainda tentar continuar com a tarefa de DJ, era o sofá o que ele mais precisava. Ali se estendeu enquanto os restantes, a alguns metros, sentados em torno de um ecrã de computador, viam as fotografias das férias e duas das presenças se haviam escapulido para uma das varandas.
Uma dessas presenças entrou na sala semi-escura a pedir cigarros e dirigiu-se a ele. Disse:
- Agora venho aqui dar-te tantos beijinhos. E vou dar até dizeres para parar. E dou na cara toda. Vou começar. Aqui... agora aqui... e aqui... agora aqui...
Vendo que ela não ia mesmo parar e por precisar de se voltar a estender no sofá, disse:
- Pronto, podes parar senão ali a outra fica com ciúmes.
Riram os dois e ela parou.
E ela parou. Parou, olhou-o e disse:
- Estou ali na varanda com a outra gaja. Estou a apanhar cacos. E tenho tantos espalhados para apanhar, sabes? E não sei como fazer a cenas. Se soubesses a inveja que eu tenho de ti, meu? Não sei como é que tu consegues. Atiram-te lá mesmo para o fundo dos fundos, passas por cada coisa e tu consegues aguentar-te, manter-te e ainda tentas fazer pelo melhor. Eu não consigo, não consigo mesmo. Nem me aguento sequer quanto mais fazer pelo melhor. Parto tudo à minha frente. Fico cega. Essa coisa de ser maduro, de ser racional a lidar com as situações eu não sei fazer, não sei. Parto tudo. Saiam-me da frentem, carago! Leva o filho da puta que tem culpa e leva quem não tem. Passo-me mesmo. Fico a odiar as pessoas, sabes? Mas odeio mesmo. Odeio toda a gente, nem imaginas como. Meu, a sério, como é que tu consegues?... Vá, mais beijinhos.
Ainda bem que ela não lhe deu grande oportunidade para responder. Ele estava de tal modo exausto fisica e mentalmente que não iria dizer nada de jeito. Limitou-se a sorrir, estupidamente. Uma pessoa ali a desabafar e ele só sorriu.
Ela voltou à varanda para apanhar cacos. Ele voltou a deitar-se no sofá verde. Pensou: "Sabe lá ela! Como é que eu consigo? Inveja de mim? Maturidade? Se calhar eu devia fazer como ela. Partir tudo e pronto. Talvez assim as dores fossem menos e menores."
Ela com inveja dele e ele, em segundos, a aperceber-se da inveja que tinha dela.
Doía-lhe o estômago, o corpo, estava cheio de sono e ainda tinha um longo percurso para casa. Mas queria aguentar o mais possível. Era a festa de anos da sua grande amiga.

9 comentários:

TheTalesMaker disse...

Primeiro de referir que muitas vezes la esta, sofre-se em silencio. pode nao se partir tudo o que esta a nossa frente, mas o nosso interior fica completamente partido. sera que deve ser melhor do que partir tudo pela frente, nao sei.
quanto ao resto, tadinho. alem de ter sido na festa da tua sister, o que por si so deve ter te levado a sentir em baixo, essa tua situaçao é mesmo má. sei como é, tenho alguem na familia com situaçao semelhante. o que vale mesmo sao os mimos para aliviarem as maleitas. abraço forte

Anónimo disse...

O mamaçal pouco prático é-me familiar ... acho que já ouvi em algum lado. Essa estória da vesícula é mesmo uma grande merda ...quando será que te operam ...

Anónimo disse...

:(
:(
:(
Que pena essa situação tua do estômago. Pensei que não acontecesse assim tanto. Porque é que não és operado no privado?

Já pensaste que poderá também estar relacionado com o sistema nervoso? Uma ulcera nevosa talvez?

De resto espero que a tua amiga tenha adorado a festa de anos, parece-me que sim.

E a outra amiga que falou contigo, já pensaste que ela poderá ter toda a razão? Pensa nisso.

Pelo que conheço de ti és uma pessoa muito forte e não é qq coisa q te deita abaixo. Se deita é pq é alguma coisa mm mto pesada e lacinante.

Anónimo disse...

Admito que não percebi muito das fotos a não ser a que diz Berlim mas em relação ao texto estou com o rui, já pensaste que pode ser sistema nervoso?

E já pensaste que a tua amiga pode ter mesmo razão?

Anónimo disse...

E tu não fizeste festa de anos porquê? Ou fizeste e não dizes aqui nada?

Eu também sou do grupo dos vomitadores. Bebo alcool e pronto, tou feita.

e também sou como essa amiga, fico cega, odeio tudo e todos e levo tudo à frente quando me sinto injuntiçada, humilhada, me fazem sofrer.
Quero lá saber do racional nessas alturas. Disparo para todo o lado, doa a quem doer.

Experimenta faze isso. Pode ser pior mas pode ajudar e muito. E há alturas em que temos que pensar só em nós mesmos.

Pensas muito só em ti? Devias.

Anónimo disse...

Que ceeeeeena! Uma noite a vomitar é algo mto chato. Mas acontece-te assim mtas vezes? Já foste ao médico?

Eu quando vomito não me sinto a esse ponto.

Não concordo com a Ana. Se conseguirmos ser racionais e adultos, então não podemos disparar para todos os lados. Temos que tentar fazer tudo pelo melhor mesmo que estejamos sem força para isso. Não devemos pagar com a mesma moeda e os outros não têm culpa.

Anónimo disse...

Às vezes fico a pensar no que tu já deves ter passado para te dizerem o que a tua amiga te disse e reagir como reagiu.
E ao ler os teus textos parece-me que és uma pessoa que já sofreu muito. Ainda não te conheço bem mas gosto muito, muito do que tenho conhecido.

Anónimo disse...

Não sei porquê mas o teu texto fez-me chorar.

Um abracinho muito grande, meu querido.

Anónimo disse...

Fotos lindas é o que se retira deste post.