Metade de si

Morta. Estava morta. O coração batia, o cérebro funcionava, o corpo mexia, mas estava morta. Não se sentia triste, muito triste, infeliz, muito infeliz, nem se tratava de uma depressão profunda. Esses estados de alma, como que tornando-a vazia, tinha deixado de sentir há semanas. Durante meses assim viveu, sobreviveu. Chorou, gritou, silenciou, sentiu a alma, o corpo, doridos durante tanto tempo até chegar a esse vazio árido. Batia nas paredes, dava murros em si mesma, contorcia-se no chão tamanha era a dor, a angústia, o sofrimento que a dilacerava, a cada dia, sem parar. Chegava a não conseguir respirar. Já nem chorar conseguia. Procurou ajuda psiquiátrica, uma ajuda que de pouco lhe valeu. Não era ela que ia às consultas naquela salinha pequena de tons azuis. Era metade dela. Era uma metade de si que se sentava naquele sofá creme com linhas muito finas de castanho.
Desde que ele tinha partido que ela sentia ter perdido metade de si. Ficou apenas com a outra metade. E metade de alguém não é ninguém, não existe, não vive nem sequer sobrevive. Portanto, estava morta. Morta de alma, morta de espírito, morta de corpo, até.
E pior do que ter metade de um ser, era ter uma metade ferida, apodrecida, cheia de gangrena. A partida dele isso provocou. Não só dela a outra metade de si se arrancou, causando uma ferida imensa, como se uma serra eléctrica a tivesse cortado de alto a baixo, que mil pontos cirúrgicos jamais iriam suturar, como essa outra parte, ainda antes de partir de vez, atirou a parte sobrante ao chão, pisando-a, esmagando-a, cortando-a, esquartejando-a, escarafunchando pedaços de carne, pedaços de uma alma inundada de dor.
Tentou. Sozinha, depois com ajuda, tentou sarar feridas, juntar pedaços de si. Tentou e conseguiu cicatrizar algumas feridas. Pequenas vitórias, pequenas esperanças com ajuda da sua força, dos amigos, da família, dos medicamentos. Mas eram tantas feridas, quantas tantas eram as vezes em que, deitada na cama, de peito para cima, sentia ao lado, mesmo ali ao seu lado, deitada, uma figura que não vislumbrava bem. A morte. Era a morte mesmo ali deitada a centímetros de metade de si. A morte ali quase, quase a tocar-lhe.
Não tinha medo, não se importava. Sentia até um certo alivio. “Toca-me, dá-me a mão, agarra-me, cobre-me o corpo que me resta, a minha alma seca e leva-me daqui. Por favor... já não aguento mais.”
Hoje, desde há semanas, não sentia a morte ao lado. Para sentir era preciso estar viva e ela estava morta.
Arrastou o corpo que lhe restava para o banho. Ao entrar na banheira, o seu pé bateu com força na parede da mesma. Sangue começou imediatamente a jorrar por entre a unha do dedo maior. A dor seria muita, certamente. Mas não era. Nem muita nem pouca. Não sentia nada. Estava morta. Nem para o dedo olhou.
Vestiu uma roupa qualquer e saiu para a redacção do jornal. Os colegas, outrora tão importantes, com quem já se tinha divertido tanto e gostado tanto de trabalhar, eram-lhe agora indiferentes. Podia ficar em casa, podia ficar de baixa por doença e durante dias e dias e dias ficou. Mas isso foi em tempos,quando se sentia mal, muito mal. Isso era para os doentes, logo, vivos. Ela não estava.
Então porque ia trabalhar? Talvez porque os mortos podem ressuscitar. Talvez porque haja quem tenha morrida durante minutos e algo os trouxe à vida. Se no seu mais profundo íntimo pensava assim, se ainda pensava, então ainda talvez não estivesse mesmo morta. Mas estava, certamente, num estado bem abaixo do estado de coma. Esse viveu-o durante muito tempo, há meses, quando se tornou metade do seu ser, quando ele partiu e levou com ele o que ele era, metade de si.
Foi trabalhar e voltou para casa horas depois. Não sabe o que fez, com quem falou, o que escreveu, sequer se fez alguma coisa. Ultimamente, pelo que se lembrava, os colegas deixavam-na ficar ali sentada, inerte. Agora nem sabia como eles reagiam.
Abriu a porta, entrou, largou a mala no chão e dirigiu-se à cozinha. Abriu o frigorífico e pegou no único objecto que ali se encontrava. Uma garrafa de água fria. Tirou-lhe a tampa, levantou-a, levou-a à boca e bebeu. A água começou a escorrer-lhe pelo queixo, pelo pescoço, pela camisa, até pingar e molhar o chão. Afastou a garrafa, na vertical, até ao cume de metade de si e deixou-a vazar pelo cabelo. Não sentiu qualquer frio. Estava morta. Já há muito que não se espantava ou assustava com essa evidência.
Enquanto o cabelo molhado ia escorrendo, dirigiu-se à janela da divisão.
No estendal estava uma toalha seca pendurada há dias, senão semanas, já com cor indefinida, talvez tivesse sido verde. O que interessava uma cor? A toalha secar-lhe-ia a face, o cabelo, os seios molhados.
Olhou, durante meio minuto, o que fosse que estivesse para lá da janela. Agarrou-se às extremidades da mesma e sentou-se no parapeito, no 11º andar onde vivia. Onde tinha vivido os mais felizes e mais infelizes momentos da sua vida. Onde viveu, afinal. O 11º andar onde, há semanas, em data incerta, tinha aberto os olhos...morta.
À sua frente a paisagem que outrora lhe pareceu tão agradável, atrás de si a cozinha suja.
Estava um ventinho fresco que lhe fazia mover a saia e a camisa. Não o cabelo comprido escuro, esse estava ensopado, colado à cabeça, ao rosto. Um ventinho fresco que, por momentos, pensou sentir. Não, não podia sentir, estava morta.
Assim ficou mais uns minutos. Soltou as mãos e estendeu os braços, não sabe se para a frente, para baixo ou se os abriu. Não interessava. Era indiferente.
Deixou-se cair. Caiu para trás.

13 comentários:

TheTalesMaker disse...

Compreendo perfeitamente a dor da pessoa desta história. De facto, quando se está agarrado a alguém pelo amor e quando esse alguém nos é arrancado, ficamos mortos. Uma espécie de zombies, que fisicamente vivem, mas sem uma alma. É como que nos tirassem o único sentido que nos levava a viver. Portanto ficamos sem rumo, sem direcções, sem objectivos, sem sentido para a vida. Uns mortos-vivos. Felizmente, a queda foi para trás... Talvez tenha sido um sinal do destino a querer dar mais uma oportunidade aquele ser ali desprotegido. Uma vida reconstruída do zero, do NADA, de um vazio interior. Mas uma outra oportunidade para reconstruir a vida.
Um beijo grande à personagem desta história e tenho esperanças que a sua vida irá mudar para melhor e para sempre.

Anónimo disse...

Que aterrador ... estou mal disposto com este texto ... para agravar tudo, só com uma musiquinha altamente depressiva à mistura ... hoje estes contos fazem-me mal. Anteontem uma senhora que vive mesmo em frente à minha escola, encarregada de educação de um aluno da escola, atirou-se do 6º andar, mas está viva parece. Hoje suicidou-se uma rapariga daqui, premeditadamente. Durante o fim-de-semana foi arranjar o cabelo e as unhas para morrer com boa apresentação segundo parece. Hoje tomou um monte de comprimidos e sufocou-se com um saco que colocou na cabeça.
Não é nada bom ler esta estória depois destas passagens ...estou incomodado.

Anónimo disse...

Estou a visualizar esta cena na tua casa ... espero que não haja nenhuma relação ...

Anónimo disse...

Ao menos ...esta caíu para trás ... para a vida, no último segundo ela procurou a tortura da vida à paz eterna da morte ...

Graduated Fool disse...

Brama, não, não há relação. Mas o cenário da minha casa é adequado, por acaso. Não és tu que estás sempre com pânico que eu, um dia, a estender ou a apanhar roupa do estendal, escorregue e caia?
Deixa-te de coisas.

Em relaçáo ao terceiro comentário teu, essa a tortura da vida à paz eterna da morte só podia mesmo vir de ti. Exageradíssimo no pessimismo.

João Roque disse...

Deve ser terrível a perda de alguém com quem compartilhámos tudo, uma vida inteira.
Senti isso, de uma forma indirecta, ao ver a imensa tristeza em que minha Mãe caíu, ao perder o meu Pai; é preciso ser forte e tentar, passo a passo reviver, e aí é importante das pessoas amigas, que devem estar à altura de compreender e ajudar uma situação dessas.
A tua história, muito bem escrita arrepia um pouco, sente-se o frio eo desencanto daquela mulher, em cada palavra; termina com uma breve alusão, que pode significar uma evolução positiva.

Anónimo disse...

Um texto muitíssimo bem escrito, de uma crueza extraordinária.
Parabéns muito sinceros.

Deixo aqui o link para uma música que já meteste aqui no teu blog há uns meses e que acho adequado ao texto.
Acho a versão excelente e com um final excelente.
Espero que gostes.

http://www.youtube.com/watch?v=66MFvu4-VaA

Anónimo disse...

Nunca me senti assim a este ponto mas deve ser mesmo terrivel. Nem consigo imaginar, nem quero. O texto incomodou-me mm mto.
És um contador de histórias magnifico.

Anónimo disse...

Chamem-me maluco mas acho que algo tão triste consegue ser algo ao mesmo tempo tão belo.

Anónimo disse...

Não consigo comentar. É demasiado doloroso o que li.

Anónimo disse...

De 0 a 100 dou 99 pq não gosto de ler coisas tão tristes. :(

Anónimo disse...

Um escrito notável. Os meus parabéns Graduated.

Anónimo disse...

E quando escreves um livro? Mas menos terrível doq eu isto poruqe senão eu chego ao fim e acabo como ela. Já me arrepiei e chorei aqui por isto.