A camisa

O rapaz não ligou muito à camisa. Até a estranhava. Mas cada vez que passava na montra olhava-a e gostava mais dela. Praticamente todos os dias passava ali e lá estava ela. Ali pendurada muito composta. “Se calhar não gostava muito dela, afinal”. Disto se queria convencer. Não podia sentir tão forte impulso. Isso irritava-o. Não queria sentir aquilo assim. Seria possível? Mas gostava, gostava e muito. Exercia um fascínio qualquer sobre si. Era a camisa mais bonita, fabulosa, maravilhosa que alguma vez tinha visto. Era perfeita, o que sempre quis vestir, ter juntinho a si, a roçar-lhe o peito. Nunca tinha querido tanto uma peça assim. Tinha de ser dele. Ele queria-a. Ele precisava dela. Era perfeita para si.
Vestiu-a. Não seria demasiada para si? E era tão cara. Por isso ninguém ainda a tinha conseguido comprar. Era mesmo aquela. Era mesmo aquela. E estava ali à espera dele. Dava-lhe um arrepio tão bom na pele. Irritava-o sentir que era tão importante para ele.
Comprou-o. Tinha de ser. Tinha de ser sua, levá-la para casa. Seria sua para sempre.
Ainda antes de chegar a casa, não resistiu e vestiu-a. Ficava-lhe bem, muito bem mesmo. Ainda bem que a tinha comprado, era linda e ele ficava lindo com ela. Apetecia-lhe usá-la todos os dias. Usava-a e mostrava-a. Os amigos elogiavam-na, a família também. Até havia uma notória inveja. As pessoas não eram assim tão felizes com as camisas que tinham. Queriam sentir-se assim. Ele ficava feliz com os elogios. Nunca ninguém o tinha visto assim tão vaidoso a andar pelas ruas, a entrar numa qualquer sala cheia.
Tinha todos os cuidados para não a amarrotar, para não lhe entornar nada em cima. Não querias nódoas na sua camisa. Tinha todos os cuidados. Era sua e adorava-a. Exibia-a com orgulho, um orgulho que lhe rasgava um sorriso de orelha a orelha. Apetecia-lhe cantar, dançar, voar com ela. Chegava a adormecer com ela vestida. Abraçado a si, abraçado a ela.
Lavava-a com o melhor detergente, amaciava-a com o melhor dos amaciadores. Colocava-a a secar sem ser em demasia para que não perdesse a mínima pigmentação.
Às vezes achava-a tão maravilhosa que quase tinha vontade de fazer-lhe um furinho, amarrotá-la numa manga.
Ao logo dos anos a camisa foi envelhecendo. Era uma camisa, afinal. Poderia durar para sempre mas mais velha, mais deslavada, mais estragada. Caberia a ele cuidar dela o melhor possível. E estava a ficar cansado desse trabalho.
Com o passar dos tempos a camisa tinha já um ou outro buraquinho mínimo mas ele nem ligava. Estava já algo desbotada mas era-lhe indiferente. Era dele. Ele adorava-a, no fundo, ainda a adorava e muito. Estava com uma ou outra manchazita mas ele até gostava. Havia ali uma relação entre eles e esses aspectos consequentes do uso eram prova disso. Davam-lhe prazer. Havia uma história entre ele e a sua camisa.
Com o passar dos anos a camisa começou, contudo, a permanecer cada vez mais no roupeiro. Cada vez mais tempo no cesto da roupa suja. Era presença habitual no monte de roupas para passar a ferro, onde ficava semanas a fio. Deixou de olhá-la com aqueles olhos. Deixou de exibi-la com alegria. Deixou de vesti-la com a vontade e orgulho de antes. Vestia-a porque não tinha muita roupa. Vestia-a porque lhe perguntavam por ela. Vestia-a porque calhava. Era para usar e pronto.
A camisa começou mesmo a aborrecê-lo. Olhava-a e não só lhe era já indiferente como lhe sentia uma certa repulsa ali em casa, onde ela estivesse.
Tantas camisas por aí, tantas roupas fantásticas por aí e ele tão pegado aquela. Isso começava a enervá-lo seriamente. Começava a olhar para ela com, cada vez maior raiva. Ela não podia ter aquela importância toda. Estava farto daquela sensação de prisão, de que uma mera camisa pudesse ter tanto peso na sua existência. Roupa é roupa e é o que menos falta por aí.
Um dia pensou deitá-la fora. Resolveu pensar seriamente nisso. Nesse mesmo dia, para tomar uma decisão, achou por bem entrar em lojas de roupa, para saber, efectivamente, o que sentia. E logo na primeira que entrou viu uma outra camisa pendurada. Afinal, esta sim. Esta sim era a camisa perfeita. Esta sim tinha as cores que ele mais adorava. Esta sim, tinha o corte que ele considerava assentar-lhe na perfeição. Esta sim, era feita do mais sublime tecido. Esta sim, era a sua camisa, a camisa que ele mais queria. Aquela por quem tinha esperado toda a vida, aquela por quem tinha procurado toda a sua idade. Aquela com que sempre havia sonhado. Afinal era esta, não a outra.
Chegou a casa, vestiu-a. Era linda. Esta sim. Afinal, a outra... nunca tinha gostado assim muito dela. Tinha-se enganado. Esta é que era a camisa que seria sua para sempre. Esta é que era merecedora de todos os cuidados e atenções. Esta é que era para estimar ao máximo e o melhor possível.
Abriu o roupeiro e não viu a outra camisa. Estava no cesto da roupa suja, só podia. Não, não estava. Estava junto ao cesto mas no chão, por trás do mesmo. Pegou nela com dois dedos e com o braço bem estendido. Não a queria muito perto da nova que tinha vestida tão juntinha ao seu corpo. Olhou-a. Ignorou um certo aperto de peito sentido e pensou como é que alguma vez pôde sequer ter gostado daquilo? Afinal não gostava das mangas, do corte, dos botões que eram até muito feiosos, das cores... Como é que pôde ter gasto dinheiro naquele trapo. Afinal não era nada daquilo que queria ou alguma vez tinha querido.
Não a meteu no cesto para lavá-la. Não a largou no chão. Atirou-a mesmo. Atirou-a com raiva, com repulsa e riu-se. Uma camisita tão ridícula. O que era aquele trapo velho ao pé da maravilha que trazia vestida? Esta sim. Afinal esta é que era perfeita para si. A outra fora um engano de anos. Teve a sua graça durante uns tempinhos, não mais do que isso. Nem nunca a deveria ter comprado. Tanto dinheiro por aquilo.
Olho-a ali no chão e voltou a rir-se. Levantou um pé e com a sola suja do sapato pisou-a. Pisou-a com força. Dava-lhe um certo, senão mesmo, muito prazer. Pisou-a e arrastou-a pelo chão. O chão precisava de ser limpo. A camisa nova merecia estar numa casa limpa, como nova. Ia começar uma nova vida e a camisa velha serviria para esse início.
Aquele trapo deslavado estava ali a mais. Havia sido um erro, um engano mas pronto, serviu para o que serviu, e agora servia para limpar o chão da casa onde ele vestiria, frequentemente, a nova camisa, onde ele a trataria muito bem, como nunca tratou este trapo, onde ele exibiria a sua nova aquisição.
Com o pé atirou-a para longe, para um canto. Ficaria ali uns tempos pendente. Não ia já deitá-la fora. Dava para ir limpando o chão, o pó, para lavar manchas de gordura que salpicassem o chão da cozinha. Dava até para ir cortanto em bocados mais pequenos uma vez que assim inteira não dava muito jeito. Em tempos foi razoável para o vestir, para que não tivesse frio, só para isso. Nada como esta nova que serviria para bem mais do que isso. Esta sim, era maravilhosa. Esta sim, completava-o. Aquela ali no chão caída, enrodilhada, manchada, suja, esburacada, ali ficaria para que, no próximo sábado, quando os seus amigos viessem a sua casa jantar, a usassem na cozinha e a cortassem como lhes desse jeito. Eles que fizessem o que entendessem. Eles sempre a cobiçaram. Eles sempre sentiram inveja quando ele a vestia e se exibia com ela. Eles sempre se quiseram sentir assim como ele se sentia com ela. Invejosos, teriam muito prazer em acabar com ela de uma vez. Ele não queria saber. Ele já não queria saber daquilo para nada. Ele andaria pela casa a mostrar a todos eles a sua nova aquisição. Esta sim, ideal para si. Afinal, aquela que sempre quis, com que sempre sonhou. Aquela que seria sua para sempre. Esta sim. Esta sim.

11 comentários:

Anónimo disse...

Uma alegoria muito interessante e bem conseguida.
É hediondo quando tratamos as pessoas como se fossem meros objectos. Nem os objectos que marcam a nossa vida devemos tratar assim, quanto mais pessoas. Usá-las até querermos e depois deitá-las fora, ainda pisá-las antes e cortá-las.
E a inveja dos amigos só mostra mesmo que era algo de muito especial que os incomodava a eles poruqe não tinham nada assim. Dava-lhes prazer destruir o que os incomodava por não terem.
E a nova camisa servirá até quando? Mesmo que sirva para sempre, o que o rapaz fez à outra não se faz. No fundo a outra era tão importante que ele não aguentava isso, daí a dor que ele quis apagar qdo pegou nela e agarrar-se a nova camisa para começar uma vida nova.

Anónimo disse...

Excelente metáfora para as relações humanas.

As vezes alguém é tão importante para nós, mexe tanto connosco que preferimos destrui-lo. Essa atitude diz muito do carácter cobarde das pessoas.

Anónimo disse...

"Às vezes achava-a tão maravilhosa que quase tinha vontade de lhe fazer um furinho, amarrotá-la numa manga." ... adoro esta frase, demonstra a insaciável insatisfação do Homem, qd tem algo quase perfeito em mãos sente-se desconfortável, não se acha merecedor de tal coisa ou então, tem mesmo necessidade de causar alguma incorecção, inexactidão naquilo que roça a perfeição; por outro lado, qd algo é tão imperfeito, incansavelmene tenta arrumar tudo no lugar, corrigir coisas materiais e pessoas.

Este é seguramente dos teus melhores textos e dos que mais me emocionou ler (como diria o Nelo da Idália:"_ Fiquei lavado de tanta lágrima.") ... não, a sério, é excelente, bem imaginado, potenciado pela própria experiência pessoal.

É expressão que resulta da sociedade dos dias de hoje, em que rapidamente se descarta tudo e todos ... é uma sociedade que me repugna e me enoja. Quando facilmente "se troca de namorado como se troca de camisa", realçando que, muitas vezes, essa troca se estende a outros tipos de relações interpessoais ... vejo como seriamente comprometido o futuro da humanidade. Nos dias de hoje, já nem se trata de nada ser dado como adquirido, trata-se de nada ser dado como adquirido por um tempo mais ou menos duradouro. As pessoas cansam-se de tudo, um dia as coisas são o máximo, as pessoas extraordinárias, no dia seguinte, as coisas estão no lixo ou na reciclagem, as pessoas afinal não eram tão boas assim ou, eram uma merda declarada. Nada é coerente.

Nota-se uma certa raiva tua, que deixas passar sobretudo na parte final do texto, mas que é mais que compreensível ... eu compreendo e entristece-me muito.

Para mim, continuas a mesma camisa do início, o sol ainda não lhe retirou a pigmentação.

Anónimo disse...

Não concordo muito com o brama. Acho um texto muito bom, excelente mesmo, com frases que parecem que dizem pouco mas que dizem muito, mas não é o melhor texto do Graduated Fool. Mas é excelente. Para mim há outros que me deixaram completamente arrepiado, com uma sensação de surpresa como se tivessem dado uma bofetada com muita força.
Mas é mais um texto muito original e que pegando numa peça de roupa nos diz tanto da sociedade em que vivemos. Passamos grande parte do tempo a observar os defeitos dos outros mesmo que eles não sejam assim muito importantes e graves. Por outro lado quando temos alguém, um amigo, um familiar que é excelente, como que sentido uma certa inveja, arranjamos maneira de pegar nas minimas coisas para aumentá-las e fazer ver que essa pessoa não é nada de especial. É uma maneira de não nos sentirmos inferiores.

Anónimo disse...

Adorei este post. Adorei.

É comum implicarmos com pessoas que achamos tão boas ou melhores, mais admiráveis do que nós, mais do que implicarmos com pessoas que achamos estar abaixo de nós. É quase como se essas pessoas fossem nossas rivais, nos tirassem um certo posto, um certo grau de atenção. Dá-nos prazer deitá-las abaixo, minimiza-las. E sentimo-nos superiores por isso.

A camisa era admirada, tinha demasiado valor e ele não soube lidar com isso. Destruiu-a o os amigos fizeram o mesmo. Ela era uma ameaça ao seu estatuto.

Muitas vezes as pessoas dão-se melhor com outras que elas acham inferiores. Assim sentem-se admiradas, o centro e faz-lhes bem ao ego. Quando assim não é e se dão com pessoas que de algum modo superiores, é porque são pessoas que gostam de aprender, de evoluir, de melhorar.

Eu sempre gostei de conviver e me rodear de pessoas como eu ou melhores do que eu, mas sei que a maioria não é assim.

Anónimo disse...

Para o rui:

eu não disse que era O MELHOR texto, disse que era UM DOS MELHORES textos, relativamente aos que li e houve muitos que não li, os mais antigos. Digo-o não por ser melhor na qualidade da escrita, do vocabulário, etc ... refiro-me mesmo à pertinência do tema nos dias de hoje, o texto funciona ao mesmo tempo como uma demonstração de revolta, ironia,criatividade, alerta e um estalo para acordar aqueles que muitas vezes não querem ver esta realidade.

Para a joana:
infelizmente muitas pessoas funcionam como tu referes, mas isso acontece tão simplesmente porque de facto o que as preocupa mesmo é a sua imagem no imediato para com os outros, querem ter um destaque e esquecem de trabalhar e alimentar o seu próprio interior.Não creio que se trate propriamente de uma questão de superioridade ou inferioridade, porque na maioria dos casos a questão passa mesmo mais pelo aspecto físico do que por outros factores. Tal como tu, eu também gosto de me dar com pessoas inteligentes ou interiormente interessantes e cada vez mais. Começo mesmo a ver como forte perda de tempo confraternizar com pessoas vazias, com um discurso desinteressante, que nada acrescem ao que já sei, ou que irremediavelmente se chocam comigo em assuntos mais delicados. Eu gosto de aprender com as pessoas e ensinar também, se as pessoas estiverem interessadas claro.Não estou de facto preocupado com a minha imagem nesse grupo ou conjunto de pessoas face aos demais, até porque os outros nem sempre nos vêem como nós imaginamos e por vezes destacam aspectos que nem julgaríamos mostrar. Mesmo no que respeita ao aspecto, a forma como cada um percepciona a beleza dos outros é tão variada.
Eu desconfio muito de gente exibicionista à partida, começo logo a antever aspectos negativos de personalidade,se o obejecivo é o destaque, eu destaco, mas pela negativa ... não é necessário, as coisas surgem naturalmente e a mentira tem perna curta, é preferível sempre em qualquer situação sermos nós próprios, o passar dos dias mostra-nos isso mesmo.

Anónimo disse...

Não fiques convencido mas tu fazes-me querer ser uma melhor pessoa.

Anónimo disse...

O problema é que as pessoas não são camisas, roupa, objectos e parece que estamos sempre as esquecer-nos disso. Olhamos para o nosso umbigo e doa a quem doer. E quando alguém é especial há como que um gostinho também especial em fazer doer mais.

Meu querido, parabéns pelo texto, por essa tua mente fértil e criativa, pela pessoa especial que és.
Tenho tantas saudades do teu humor, do teu sorriso, do teu olhar, das tuas conversas, de ti.

Agora bateu-me mesmo uma saudade tão grande tua. :(

Anónimo disse...

Há aqui post que merecem prémios.

TheTalesMaker disse...

Cá está a prometida metáfora da camisa que me tinhas falado.
Parabéns, está excelente.
Quanto ao texto, não há muito mais a referir ao que o resto do pessoal já comentou. Mas de facto, é triste certas pessoas tratarem outras como trapos, trapos esses que em tempos foram o seu motivo de maior felicidade, de alegria, de boa disposição, de partilha, de amor. Isto durante anos e anos a fio. E depois, depois de se fartarem da pessoa ou sentirem que já não a querem, arranjam outra e para piorar, exibem essa nova pessoa e fazem comparações, humilham-na, mal tratam, provocam-lhe sentimentos e tristezas quase a ponto de desejar que a morte venha para aliviar e fazer passar a tal dor de vez. Infelizmente há pessoas mesmo muito más e cruéis.
Felizmente meu querido, apesar de tudo, foste capaz de ultrapassar isso e hoje tornaste-te uma pessoa mais bela, mais forte, mais resistente. Portanto, tu, aquela camisa que antes se deixou pisar, é agora feito dum material mais resistente. E quanto ao resto, tal como te disse, sei que alguém irá te "vestir" de novo, ou seja, sei que um dia pertencerás de novo a alguém e esse alguém a ti, isto porque quando duas pessoas se amam realmente, a entrega é total, mas entre as duas partes e não somente por uma das partes. Para mim, como amigo, tu és mais que uma simples camisa. Não ando contigo por aí para me exibir, para ser visto, para fazer contactos com outros, para me aproveitar do que tens. Se quiser antes comparar, és me mais um roupão, um pijama, uma manta. Dás-me alegria, boa disposição, companhia, aconchego quando preciso de falar contigo, dás-me bons momentos, experiência, saber, conhecimentos sobre o que é a vida e acima de tudo, isso tambem já o sinto, amor fraternal. Por tudo isso obrigado e tal como disse, espero (e sei que sim), que um dia serás de novo feliz.

João Roque disse...

Eu sou visita recente deste blog; sendo assim, não posso partilhar das opiniões comparativas com outros textos teus. Mas, com um texto como este e outros 2 ou 3 que li, recentes, vou vir muitas vezes mais, estou certo.