Estava cansadíssimo. Não tinha dormido nada e tinha passado o dia a correr de um lado para o outro. Corridas físicas e corridas mentais. Por um lado era bom, assim tentava ocupar a cabeça com coisas práticas e evitava pensar. Evitava pegar no telemóvel.
Sai de casa. Compra tabaco. Bebe um café. Faz um telefonema. Outro telefonema que não chega. Conduz quilómetros. Procura estacionamento que não há. Um encontro numa rotunda para receber papelada. O fulano atrasado que o olha de cima a baixo e lhe pergunta: "É professor? Não tem nada ar de professor. Desculpe, mas é que parece do mundo das modas!". Sorri e pensa: "Pois, quando escolhi ser professor não foi, efectivamente, para andar a "voar" atrás de papéis de estágios de alunos porque você, que sei lá se tem ar ou não de engenhiro, não soube mandar a tempo e horas para onde devia. Sabe, a reunião é daqui a horas? E agora quem é que trata disto tudo, hã?!" Uma chamada de telemóvel. Não era a que queria. Despede-se do sujeito. Mais quilómetros. Mais estacionamento complicado. Estaciona em segunda fila. Dirige-se a uma empresa para receber mais papelada. Bebe outro café. Vai para a escola. Chamam-no daqui e dali. Ouve o seu nome não sei quantas vezes e ainda mal tinha chegado. É a Prova de Avaliação Final que ainda não está terminada. É a matriz que a outra perdeu e precisa que ele a imprima. É uma acta para ler e assinar. É uma aluna que tem faltas ainda para justificar. São mais actas para ler e corrigir. Espaços no livro de ponto que colegas não preencheram. Um relatório de grupo para acabar. Um horário da semana da turma para fazer. Passar coisas de umas pen's para outras. As impressoras não funcionam ao ritmo pretendido. Análise de dados estatísticos sobre resultados de provas globalizantes de aferição interna por fazer. Mais um relatório para acabar. Uma mãe de um aluno a ligar e a falar do marido. "Mas estes pais acham que eu tenho cara de psicólogo? Sempre a mesma coisa!" Um dossier que cai ao chão. Papéis para preencher. Outro dossier para organizar. Mais um café.
As horas iam passando e o telemóvel não tocava. E a reunião de avaliação estava prestes a começar. 17 horas. Pronto, faltavam papéis mas o essencial daquele dia estava feito. A reunião podia começar. Estavam todos presentes. Vamos lá, então. E ele já cansadíssimo com toda a gente animada à sua volta. Afinal, a seguir iam jantar todos para comemorar a finalização do curso. "Finalização?" pensava ele. Mas ainda falta tanta coisa para fazer. Eles ainda têm exame no final da semana. E ainda havia tanto para tratar até lá. Fora o grupo, fora o departamento. Ele era professor, mas agora, aulas terminadas, parecia um executivo. Tudo menos professor. Não se importava assim tanto, até tirava daquilo um certo gosto. Era algo de diferente. Mas também era em demasia. O tempo corria mais depressa do que as tarefas eram concretizadas. Finda a reunião, lá foram para o restaurante. Até um colega do Porto veio à comemoração. E claro, tal como era já certo e sabido, o presente para o coordenador. O presente para si.
Sorriu e a face avermelhou. "Oh, ficas tão giro assim timido. Pareces um puto sem jeito." Disse uma colega sempre muito maternal consigo. E era isso. Sentiu-se um puto. Ele que não fazia festa de aniversário há anos, ali estava numa situação como se da sua festa de aniversário se tratasse.
Lá lhe apareceu à frente uma caixa enorme forrada de branco. Levantaram-se todos para ver a sua reacção. Mais de vinte olhos a olhar para qualquer atitude sua. Abriu a caixa e lá dentro estava um grande número de papéis enrolados. Por cima destes uma revista de jardinagem enrolada em forma de canudo.
Sorriu. Comentou. Tiraram fotos. Riram. Ele sabia que não seria só aquilo.
"Vá, então já chega, não procures mais porque não há mais nada!" E os olhos riam-se marotos. Remexeu nos papéis e lá estavam outros. Uns de tamanho A4, brancos, em que no primeiro se lia: "Máximas da Coordenador". Já sabia o que o esperava a seguir. Umas quantas páginas, com letras enormes a construir frases e expressões que ele usava, com frequência, junto dos alunos e colegas daquele curso.
1º lugar - "Temos pena!" Faltou o "... ou não!"
2º lugar - "Hoje é que vai ser rápido! (sempre que havia reunião)"
3º lugar - "Whatever!"
4º lugar - "Já lhes disse: Eu não gosto de vocês!" Aos alunos, claro.
5º lugar - É-me indiferente... (a propósito de qualquer coisa...)
E ali ficaram a brincar, a gozar, a rir com aquelas expressões.
Voltou a remexer nos papéis dentro da caixa branca. Mais alguma coisa. Um postal. Um postal escrito com um texto bonito e assinado por todos os colegas do curso, colegas que o acompanharam ao longo daqueles dois anos. Colegas que ajudou e que o ajudaram. Colegas com quem partilhou alegrias e tristezas relativas aqueles 14 miúdos de quem estava farto mas por quem nutria um carinho especial, mesmo que não o admitisse.
Mais umas piadas, mais umas brincadeiras, mais umas fotos e mais um presente. Lá no fundo da caixa branca um outro envelope. Abriu-o e era um papel pequeno, vermelho. Um cheque-prenda no valor de 75 euros para usar numa loja Gardénia.
"Nem imaginas como foi difícil encontrar uma prenda para ti. Andámos a perguntar a montanhas de gente na escola. Nós duas fomos a lojas, andámos a ver roupa, foi mesmo complicado, mas foi muito giro. Uns diziam umas coisas, outros diziam outras. Mas como achamos que tu és assim diferente até na maneira de vestir, não sabiamos bem e optámos por isto. Assim compras o que entenderes mas vais ter de trazer para vermos."
E risos e sorrisos e piadas e fotos e olhares e ele sem saber o que dizer, como dizer, como agir, como agradecer. Estava emocionado, estava envergonhado, estava sem palavras. Olhava para as prendas e mal conseguia olhar para as pessoas.
Agradeceu muito mas não fez nenhum discurso. Só lhe apetecia dizer: "Gosto muito, muito de vocês, meus queridos."
Foi para casa. Sentou-se em frente ao computador e começou a escrever.
Foi escrevendo e vomitando, escrevendo e vomitando. "Que bela forma de acabar o dia!" pensou. Aquele dia em particular. Mas queria acabar o texto. Tinha de acabá-lo. Sabia que, depois, ia passar grande parte da noite a vomitar.
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5 comentários:
Apesar de todas as frustrações sentidas no dia-a-dia, sabe bem ser recompensado dessa forma!! Vá... não te queixes muito porque há por aqui pessoal bem menos reconhecido!! ;) Beijinhos
E porque vomitas-te tu? Assim tanto tempo? Não percebi.
Isso é que são colegas. Às vezes vale apena a correria do dia a dia.
A parte do vomitar é que não percebi.
Bem tantas prendinhas. Também quero roupa da gardénia, é alternativa e tem coisas mto giras.
Mas o melhor deve ter sido o q escreveram no postal.
Um beijo
Tu dizes muito "whatever" de facto. Acho tanta graça à forma como o fazes.
E como é que não haveriam de fazer-te esse jantar, tu mereces isso e muito mais.
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