Pensal Cacau

Para muitos uma estupidez, até coisa de louco e, por isso, não gostava de falar no assunto. Esquivava-se sempre cada vez que o tema de conversa tocava no transcendental. Calava-se ou fazia por mudar-se de conversa. Muitas vezes ficava a ouvir as opiniões alheias. Os que o conheciam melhor sabiam porque se calava. Não que ele lhes falasse muito sobre isso, mas porque, eles mesmos já tinham assistido a algumas "cenas" a que chamavam de adivinhações. Olhavam para ele de lado para ver a sua reacção, calavam-se também ou sorriam.
Um dia, um amigo disse-lhe que ele era como uma ponte, uma ponte entre este e outro mundo. Primeiro teve vontade de rir porque achou ridículo. Depois parou para pensar, sem nunca querer entrar por determinados meandros do pensamento. Era uma parte que tentava anular em si. Há anos que assim era. Por uns períodos conseguia-o, noutros nem por isso. Esses outros ocorriam quando estava mais fagilizado, com as defesas mais enfraquecidas, sabia-o.
Às vezes chegava a ser assustador, tão assustador que o levava mesmo a não querer pensar, vivenciar, sentir, ouvir algo que, de alguma forma, deixasse transparecer, até para ele mesmo, aquilo que ele era, aquilo que era uma parte de si. Aquilo que, desde há anos, lhe fazia confusão, não tanta quanto a outros. Uma confusão que nunca sentiu durante toda a sua infância, mesmo adolescência. Sempre achou natural, normal. Sempre pensou que toda a gente era assim. Há uns anos começou a perceber que, afinal, não. Começaram a fazer-lhe ver que "desculpa, isso não é normal". Apenas um amigo médico lhe disse: "Não é comum, é até muito raro. Mas é normal em certas pessoas. Nós só usamos uma pequeníssima parte do nosso cérebro e há pessoas que o usam mais. Isse reflecte-se em várias áreas. Tu tens, certamente, uma parte do cérebro mais desenvolvida que o habitual. Uma parte que te faz ser assim, ver essas coisas, sentir o que tu sentes. É fascinante. Devias explorar isso e devias ser estudado."
Ele nunca o quis. Não queria ser estudado, não queria ser olhado como diferente, não queria ser assim. Por vezes achava graça e divertia-se com algumas situações. Achava graça e divertia-se pelo divertimento e fascínio que essas provocavam noutros. Mas, em geral, não queria ser assim. Ao longo da vida, já tinha sofrido muito com isso. Sentia e via coisas que não queria. E decidiu lutar contra. Não sabendo bem como fazê-lo, empenhou-se numa tarefa, até para ele, estranha de camuflar, anular, barricar tais "adivinhações", "flashes", "visões", "premonições", o que lhes quisessem chamar. Mas quando estava mais frágil, lá vinha tudo outra vez, como se aquela tal parte do cérebro estivesse à espera de uma brecha para entrar em acção. E era nessas alturas que mais sofria, era nessas alturas que mais via o que não queria.
Algo que nunca conseguiu barrar era a "aura" das pessoas. Desde pequeno que ouvia falar em aura mas nunca tinha percebido bem o que tal quereria dizer. Quem teria inventado tal coisa? O que seria isso? Talvez toda a gente a veja, talvez toda a gente a sinta. Ele via e sentia, disso não tinha a mais pálida dúvida.
Havia pessoas, não muitas, às quais nem se chegava, com as quais não queria manter grande contacto, se possível nenhum. E temia pelos que lhe eram próximos quando conviviam ou eram amigos dessas pessoas. Tentava, muito subtilmente, alertá-las para essas pessoas. As pessoas das "auras más", como há anos lhes decidiu chamar, por facilitismo de expressão. Mas havia outras, outras pessoas que, num ápice, se lhe afiguravam com uma luz, uma aura de grande beleza. As pessoas das "auras boas".
Há algum tempo, num jantar de amigos, conheceu uma dessas "auras boas". Semanas depois voltaram a cruzar-se e hoje um terceiro encontro para novo jantar. Conversaram, mudaram de lugar, conversaram, mudaram de lugar e continuaram a conversar. Deu-lhe boleia para casa. Continuaram a conversar. O carro parou e conversaram mais um pouco.

...
Z - Vá, até amanhã.
R - Até amanhã? Mas combinámos alguma coisa para amanhã?
Z - Não propriamente mas não vais ficar em casa. Não dizes que não queres focar em casa?
R - Sim, não quero mesmo. Preciso de sair, estar com pessoas, ver gente.
Z - Pronto, então até amanhã. E dorme bem.
R - Dormir? Eu não vou já dormir. O corpo está cansado mas eu não vou dormir. Ainda vou ver televisão e comer Pensal ou Nestum, de que gosto muito. Não sei se acontece com as outras pessoas mas eu quando bebo fico cheio de fome.
Z - Eu fico é cheio de sede.
R - Pois, também.
Z - Eu também vou ver tv, ou um dvd, qualquer coisa. Cama é que ainda não.
R - Sabes, é que agora nem música me apetece ouvir. Tenho lá uma pilha de cd's para ouvir e não ouço. Vejo tv. A ver tv somos mais passivos. Estamos ali a ver umas coisas a estas horas e pronto.
Z - É isso mesmo. Vemos umas coisas sem ter de pensar muito. E isso é bom, também.
R - Bem... então... sendo assim... até amanhã... e descança.
Z - Tu também. Vê lá se este lugar é seguro para ficares aqui. Isto é escuro. Não há perigo?
R - Não, não. Eu moro já ali, não te preocupes.
Z - Ok, então boa Pensal Cacau e até amanhã.
R - Obrigado, a sério, obrigado. Então até amanhã.

Quando ia no carro, a caminho de casa, pegou no telemóvel e escreveu:

- Engraçado, fizeste-me ter vontade de comer Pensal. Algo que não como há muitos anos. Quando era pequeno comia muito. Chamava-lhe "farinha preta". Segunda-feira vou já comprar para recordar. Boa paparoca em frente à tv e dorme bem.

Já em casa a resposta e mensagens seguintes:

- Olha que curioso. Eu fiz-te recuperar a vontade de comer farinha Pensal? Então acho que te transmiti algo de bom. Sim, vou agora preparar a minha tijela. Um bom descanso para ti. Beijos.

Outras mensagens se seguiram.

"Trasmitiste algo de bom? Tu transmites muitas coisas boas. Tens uma boa aura. Soube-o quando fomos apresentados e continuo com essa certeza." Assim pensou quando se sentou no sofá. Descalçou-se atirando os ténis ao ar, ligou a tv, mas não comeu Pensal. Não tinha. Sabia, contudo, que na segunda-feira, teria. Teria uma tijela cheia de Pensal Cacau para se deleitar e recordar aquele sabor tão familiar que o transportaria, certamente, à infância. Uma infância em que era tão feliz. Uma infância em que não sabia, efectivamente, o que era sofrer. Uma infância em que se deitava e acordava tão descansado. Uma infância em que se sentia tão normal. E era tão bom. Uma infância em que, ao acordar e/ou ao deitar, via a sua mãe entrar no quarto, com aquela expressão de profunda ternura que só as mães têm, acompanhada da sua "farinha preta".
Deitou-se no sofá. Pegou no comando da tv e ali se deixou ficar. Sentia-se bem. Afinal, tinha estado com uma pessoa com uma "aura boa". Era de pessoas assim que precisava na sua vida.

7 comentários:

Anónimo disse...

Escreve mais sobre isto, sobre as auras, as adivinhações, os flashes, etc. Fiquei muito curioso. Tinha uma amiga de infância que era assim, infelizmente morreu nova. Ela era estranha e foi encontrada morta.
Ainda hoje me lembro de algumas coisas que se passavam quando estavamos juntos. Ela adivinhava mesmo coisas e via coisas que mais ninguém via.
Ela dizia vem aí a dona qq coisa mm antes da senhora bater à porta e depois era mesmo. Coisas desse genero.

Escreve mais.

Anónimo disse...

Eu acredito piamente em pessoas assim com estas capacidades. O cerebro humano é muito pouco explorado por cada um e pela ciência, mas está provado que existem pessoas assim com capacidades de vários tipos q são raras.
Tu ou quem for a pessoa sobre quem escreves devia ter seguido o conselho do amigo médico, explorar isso. Pode ser mau em alguns aspectos mas pode ser muito bom, já pensaste nisso? Estás ou está a desperdiçar uma capacidade fantástica que foi concedida e que mtos poucos têm esse privilégio. Talvez as tais pontes este e outro mundo.
Gosto de pensar nessas pessoas como os eleitos, aqueles que estão aqui para equilibrar este mundo tão desequilibrado.

E agora brincando, adovinha lá o que vou escrever a seguir:

Um beijinho muito grande.

Anónimo disse...

Eu vi logo que tu tinhas caído de um planeta qualquer que não este. Só podia mesmo.

Anónimo disse...

Se achas melhor barricar isso em ti, então tu saberás melhor que ninguém porque o fazes.

Ve-se no teu texto que tentas não aprofundar muito o assunto. Não deve ser fácil, nada fácil.

Ahhh, sempre detestei essa tal pensal cacau. Gosto é de cerelac e nestum mel. Eh eh eh

Anónimo disse...

Curioso, muito curioso. Explora mais essa tua vertente e partilha aqui no blog. Gostava muito.

Anónimo disse...

Sabia que havia algo em ti de transcendente... não me irei alongar.

Anónimo disse...

Um dia dir-me-ás como vês a minha aura.