Sozinho

Há mais de meio ano que estava sozinho, entenda-se, sem ter uma relação, um companheiro, um namorado. Não que até nem tivessem surgido oportunidades, estava sozinho porque assim tinha decidido estar. Cruzou-se com pessoas interessantes, fascinantes, simples, complexas, simpáticas, divertidas, inteligentes, interessadas, com boas "auras", pessoas com quem, em tempos, poderia deixar-se estar horas a pensar que "pois...talvez...é capaz...". Cruzou-se e vai continuar a cruzar-se. Mas não as quer para mais do que amizade. Será esse o máximo a que se permite e que lhes permite. Poderia estar a desperdiçar oportunidades, ele sabia, mas não as queria. "É para estar sozinho", assim queria que fosse.
Nunca tinha feito parte daqueles que saltam de cama em cama e mesmo sozinho nunca foi o seu “meio”. Nada tinha contra, até chegava, por vezes, a sentir uma certa inveja das aventuras por outros contadas. Tinha mais de trinta anos e contava pelos dedos de uma mão as pessoas com quem se tinha envolvido fisicamente. Também nunca tinha feito parte dos desesperados em busca de uma relação. Esses sempre lhe fizeram confusão. Com ele as coisas sempre aconteceram com certa naturalidade, uma naturalidade que nunca esperou. Nunca procurou, nunca esperou. Talvez por isso tenha acontecido. Talvez por isso nunca tenha tido a panóplia de namorados que os que o rodeiam “coleccionam”. Nunca namoriscou, nunca "andou" com alguém.
Durante toda a sua adolescência e juventude e até aos vinte e tal anos, sempre se viu sozinho, sempre se achou demasiado independente e individualista para partilhar uma “vida a dois”, mas, muito mais do que isso, nunca pensou que alguém se pudesse interessar, apaixonar, enamorar por ele, ao ponto de ter algo de mais sério, ao ponto de, durante anos, sentir-se casado. Mas assim foi. Um primeiro “casamento” terminou. Um segundo também. Não queria mais. Duas vezes era demais. Os tempos depois do fim tinham contemplado os momentos mais horríveis da sua vida. Quando pensou que já não poderia chegar mais fundo, chegou. Quando pensou que não podia voltar a sofrer tanto pelo finalizar de algo construído a dois, sofreu. Quando pensou que estava preparado para tudo, sentiu na alma, na mente e no corpo que não estava. Um aperto no estômago, uma dor no peito, um nó na garganta, uma dor que chegava a ser física. Sentiu-se ferido, esquartejado, apunhalado e as feridas teimavam em não sarar. As que iam fechando, voltavam, em segundos, a abrir-se, bastava uma música, uma imagem, um som, uma palavra, um cheiro... Chegou a sentir-se metade de si, chegou a sentir que uma parte de si tinha desaparecido, chegou a sentir-se quase morto. Estava no fundo do poço, na sarjeta, com a alma e o coração ensanguentados debaixo do mais reles tapete. Pensou, por tantas vezes, que não aguentava tamanho vazio, mais do que isso, tamanha dor. Preferia viver sentindo-se vazio do que encarar cada acordar, cada deitar, com uma dor que não se descreve.
Sabia que ninguém completa ninguém. Em última instância, as pessoas nascem sozinhas e assim morrem. As pessoas complementam-se, é diferente. E já nem essa complementaridade queria.
Achava ridículo quando, no dia dos namorados, via peluches, postais, porta-chaves e um sem número de objectos com frases do tipo “ ficarei sempre a teu lado”, “sem ti não sei viver”, “és a minha cara metade”. Pensava: “Ninguém é a cara metade de ninguém. Não, não ficará sempre a teu lado e conseguirás viver sem ele ou ela. Se eu consegui, se ainda aqui estou...” E, ao mesmo tempo, sentia tristeza por isso. Uma profunda tristeza por ter deixado de acreditar, por ter deixado de olhar com carinho, ternura e esperança para aqueles objectos, por não querer mais construir a "sua familia".
Não queria mais passar por aquilo. Estava cheio de cicatrizes, carregava um passado cheio de recordações guardadas numa caixa que era o tesouro mais bem guardado dentro de si. Um tesouro cheio de alegrias, felicidade, sorrisos, risos, partilhas, cheio de amor, cheio de luz mas também cheio de escuro, muito escuro, o escuro que o tinha feito sofrer tanto, como nunca pensou ser-se possível sofrer. Cresceu, melhorou, aprendeu, tornou-se mais capaz, mais forte, enquanto ser humano. A vida ensinou-o a criar mais defesas, a estar mais preparado. Mas estava cansado, dorido, desiludido. Não queria mais passar por tudo aquilo, nem por metade. Sabia que era demasiado sentimental, que não punha as coisas assim para trás das costas, que não conseguia, de um momento para o outro, construir um novo castelo com alguém. E por tempo que passe, construirá o seu castelo. O dele.
Tinha decidido que não queria mais, nem namoro, nem relação séria, nem “vida a dois”. Nada. Era ele, a sua família e os seus amigos. Essas seriam as pedras do seu castelo. E era com essas que iria partilhar, com que iria contar.
Aos trinta e poucos anos já tinha tido aquilo que que a maioria das pessoas procura a vida inteira. Amar verdadeiramente e ser verdadeiramente amado. Viver como casado durante anos. E isso tinha tanto, mas tanto valor, ele sabia. Mas também o tinha feito chorar as lágrimas mais doridas da sua vida. Não queria mais.
“Falhar numa relação é diferente de deixar de amar”, sempre acreditou nisso. E ele amava, ainda amava. E amava muito. Amava e era amado, sabia disso. Mas a vida a dois tinha terminado. E com isto teve de aprender a viver. Em vez de se deixar caído no fundo do poço, ia aproveitando a terra que lhe caía em cima, sacudia-a, limpava-se e ia subindo para cima dela. E ia ficando cada vez mais perto da superfície, da entrada do poço. Se escorregasse e caísse, tentava novamente. Era assim que tinha de ser, por muito fraco que estivesse. Agora era ele que importava.
Tal como nunca procurou, tal como nunca ficou à espera, também nunca acreditou muito na história do príncipe encantado. Acreditava nas pessoas, na partilha, na cumplicidade, na honestidade, na luta a dois, no equilíbrio a dois. Deixou de acreditar plenamente nas pessoas, deixou de acreditar numa relação como sempre sonhou e quis. Deixou de acreditar em algo a dois, só a dois. Sentia tristeza por isso, mas essa era a verdade.
Tinham-lhe dito coisas como: “A melhor forma de esquecer um amor é com outro amor”, “Vá, arrisca, não sejas parvo. Vais ficar toda a vida preso a um amor?”. Arriscar o quê? Assumir algo com alguém amando outro alguém? Não queria. Não era justo para o outro, não era justo para si mesmo. Ele não queria uma bengala. Queria andar direito e sozinho.
Um grande amigo seu disse-lhe: “Tu não penses que vais andar agora por aí a ter sexo com este e aquele, era bom, era o que devias fazer, aproveitar, mas não faz parte de ti. E não vais ficar muito tempo sozinho. Tu és foste feito para estar casado.” Feito para estar casado? Talvez. Talvez aquilo lhe tenha caído na alma como uma chapada, dada por uma mão pesada, na cara. Mas não queria. Estava decidido. Já tinha perdido demais, não queria voltar a perder. Viessem outros sofrimentos, outras dores, outras feridas mas não mais por causa de alguém em quem ver o seu companheiro, o seu cúplice, alguém com quem se veja a viver o resto da vida.
Talvez um dia deixasse de amar. E mesmo nesse dia não quer voltar a deixar de estar sozinho. Há mais de meio ano que estava sozinho e, por tantas vezes, parecia que se tinham passado apenas dias. Mas estava sozinho e era sozinho que tinha decidido estar. Tinha tanto amor dentro de si, tanto amor para dar, mas guardá-lo-ia dentro de si. Seria o amigo que sempre foi, estaria lá sempre que fosse preciso, amaria de outras formas, como sempre fez, mas entregar o seu amor a "outro", não. Sentia que se estava a tornar uma pessoa fria. Paciência!

6 comentários:

Anónimo disse...

Por muitas voltas que o mundo dê tu nunca serás uma pessoa fria. Isso é impossível. Podes tentar mas não vais conseguir. Tu és das melhores pessoas que eu conheço e fazes juz aquela frase de que se existem anjos na terra tu és um deles.

Talvez os anjos tenham nascido para ficarem sozinhos mas continuo a achar que deves arriscar, deves tentar porque como diz a pessoa do teu post tu és pessoa para casar. E nem sabe a sorte que tem aquele que casar contigo, nem sabe a sorte que teve aquele que te teve e te cortou as asas.

Sorte daquele que te tem ao lado, sorte daquele que tem o teu amor. Infeliz aquele que o deita fora.

Tu vales muito meu querido. Muito mesmo.

Um beijinho

Anónimo disse...

Tu frio? Deixa-me rir.

Mas ok, percebi a mensagem. :(

Anónimo disse...

Tens ideia de que com este texto afastas qualquer pretendente a marido, não tens?

Apetece-me chamar-te montanhas de nomes feios.

Anónimo disse...

É óbvio que não queres nem vais ficar sozinho! As pessoas nem sempre são aquilo que nós desejamos e achamos que merecemos, mas é preciso arriscar. É preciso viver, "sem defesas que nos façam falhar", como diz a música!! Ninguém sabe quanto tempo pode durar uma relação e ninguém sabe se o outro nos vai magoar, abandonar, etc., etc.. Aquilo que sabemos é que temos que viver com esse risco. Caso contrário... Beijinhos

Anónimo disse...

Concordo na plenitude com o que a fátima escreveu.

Tu tens qualquer coisa de muito especial a rondar o mágico que não sei explicar.

Sei que não te devias fechar, que devias tentar e deixar que tentassem.

Este post fez-me sentir uma dor...

Anónimo disse...

Não faças isso, compreendo-te mas não faças isso.

Anula esse amor e parte para outra.

Beijo