O rebanho "Lambe-botas"

Começou a dizer, praticamente sempre, o que, verdadeiramente, sente. E só não o faz sempre porque esse processo evolutivo não se pauta por uma linha rápida ascendente e porque ainda teme envolver-se nos meandros do sofrimento causado a alguém. Ainda sente que é necessário ter cuidado, bastante cuidado. Há uma linha ténue entre o que se diz e como se faz chegar o que se diz. Porque ele, acima de tudo, não suporta sentir-se responsável pela dor de alguém. Talvez algo que ainda tenha de limar em si.
Mas está cansado do conceito de "ombro amigo" não ser para os outros aquilo que ele considera que deve ser.
Quando lhe perguntam algo, ele, cada vez mais, procura responder aquilo que sente que deve responder. E isso é a verdade, a sua verdade. Não aquela que se quer ouvir. As pessoas não querem a sinceridade. Todas admiram este valor e conotam-no como um dos seus preferidos, enquanto qualidade nos outros. É prática comum dizer-se: "Admiro a sinceridade, a honestidade, a franqueza..." Mas a verdade é que, no fundo, as pessoas odeiam a sinceridade. Não sabem lidar com ela.
Ele, cada vez mais, responde com sinceridade. Mas o problema é que isso, muitas vezes, dói. O ser humano, em geral, não gosta de sinceridade. Não está preparado para ela. A sinceridade pode ferir como facas. As pessoas apreciam e sorriem perante a sinceridade que lhes convém e essa, não é a verdadeira sinceridade. Quem a esta, à verdadeira, apela para falar, opinar, agir, é conotado como mau, frio, cruel, menos amigo, menos querido, não amigo. É daqueles de quem não se gosta lá muito ou não se gosta nada. Passa, muitas vezes, por mal educado, alguém com mau fundo, mau feitio, mau carácter.
Mas ele prefere ser assim. A maioria das pessoas, não. A maioria prefere viver rodeada de mentiras, todos os dias. Se a sinceridade fosse uma característica de todos, muitos teriam muito menos amigos. Muitos seriam muito menos queridos. O ser humano vive bem é com a mentira. E isso, a ele, assusta-o, entristece-o. Continua a acreditar que é possível não ser-se assim. Se as pessoas fossem, efectivamente, sinceras, não seria assim, certamente.
Sempre teve, ao longo da vida, pessoas que o consideravam o seu melhor amigo. Sempre achou um exagero, mas sempre assim foi. Hoje, duvida que assim seja. E tem sido tudo tão repentinamente. Não se considera mal educado, grosseiro e tenta não sê-lo. Simplesmente responde aquilo que acha quando é chamado a tal. Mas aquilo que acha, muitas vezes, não é aquilo que os outros querem ouvir. Até nas mais banais curcunstâncias se começou a aperceber disso.

Alguém - Gostas das minhas calças novas, são giras não são?
Ele - Hum, não gosto lá muito.

Ele - A tua atitude não foi nada correcta. Não podia deixar de te dizer isto. As pessoas não acharam nada bonito o que disseste.

Alguém - Hoje o meu cabelo está bem?
Ele - Não está mal, mas acho que ficas melhor com ele mais curto.

Alguém - O filme foi fabuloso, não foi?
Ele - Eu não gostei.

Perante coisas tão simples como estas, ou outras mais ou menos complexas, começou a sentir que alguns dos tais tão seus próximos já não o são tanto assim aos seus olhos. Ele começou a tornar-se uma decepção. E, claro, ninguém lhe diz. Claro, porque é preferível não dizer, é preferível mentir e fingir que nada se passa.
É sempre suposto dizer-se algo como: "Sim, adoro. Claro que estás maravilhosa. Adorei, que coisa fantástica. Agiste muito bem, ora essa! O outro é estúpido, tu é que tens razão." E assim continuava a receber os mesmos abraços, os mesmos olhares, os mesmos sorrisos... todos continuavam a parar para ouvi-lo, continuavam a telefonar-lhe para desabafar, ouvir, chorar, rir.
Continuaria a ser o psicólogo de serviço, o amigo que os outros queriam e adoravam. Aquele que mal se conhece um pouco mais já é um dos maiores amigos. Mas está farto, cansado. Sempre detestou mentiras, sempre. E estas também o seriam. Não magoavam, não feriam, não afastavam, até aproximavam, mas seriam e são mentiras. E é com essas que as pessoas lidam melhor. Pretendem-se amigos "lambe-botas". Amigos que digam e façam o que queremos, não amigos que digam e façam o que sentem. Esses podem tocar lá na ferida, esses derrubam as capas de papel que se vestem, esses têm a ousadia de serem sinceros. "Abusados! Como se atrevem!? Xô, xô... distância! Afinal, que desilusão. Eu a precisar tanto que me encham o ego e vem esta gajo que eu achava tão meu amigo, tão fenomenal e sai-se com esta. Ele vai ver. Para a próxima já não perco grande tempo a falar com ele, jã não o cumprimento da mesma maneira e voltar-me-ei para os outros."
E lá ficam, cheios de risinhos e abraços envolvidos nas suas tão convenientes mentirinhas a encherem os egos uns dos outros. Os verdadeiros amigos, aqueles que nos dizem o que mais queremos ouvir.
Ele acha ridículo, acima de tudo, triste. Triste ver uma sociedade assim. Triste estar rodeado de pessoas que preferem ser assim, ver assim, entender assim.
Talvez as pessoas gostem menos dele. Talvez as pessoas já o olhem com certa desilusão. Talvez já não seja o maior amigo de ninguém, seja isso o que for. Mas prefere ser assim do que ser o melhor, o maior, o ideal, numa realidade feita de capas de papelão, de metiras e falta de sinceridade. Sente que essa realidade não o faz crescer, aprender, pensar e melhorar como pessoa. Se preferem uma mentira, não contem com ele. Esse não é o seu rebanho.

9 comentários:

Anónimo disse...

Eu acho que numa verdadeira amizade, a sinceridade continua a ser qualidade essencial e apreciada por todos. Só que ninguém gosta de ter desfeitas ou de ouvir, olhos nos olhos, a verdade nua e crua, especialmente quando o outro a diz de forma fria. Não estou a dizer que é o teu caso. Mas às vezes a nossa verdade, não é a verdade dos outros e é complicado distinguir o que é um facto verdadeiro do que é uma mera opinião ... não sei se me estou a fazer entender! ;) As relações humanas são muito complicadas... de qualquer forma, acho que não deves deixar de ser como és. Eu considero-me uma pessoa sincera mas já aprendi que não vale a pena dizer sempre aquilo que penso ... há coisas que guardo para mim e acho que não tenho necessidade de estar constantemente a bombardear os outros com a minha opinião!! Deixo-me estar no meu canto. Beijinhos

Anónimo disse...

Talvez tenhas razão, sim. Eu própria dou comigo a mentir muitas vezes só para agradar. É o medo que se tem de se ficar sozinho, sem amigos. Mas a verdade é que se são amigos devem contar com a nossa opinião e não com a opinião que lhes interessa.
Mas eu sofro desse mal. Talvez seja para não me chatear. Cobardia talvez.

Anónimo disse...

É preciso tomates para escreveres isto aqui sabendo que muitas das pessoas a quem te referes se vão identificar com isto.
Mas ainda bem que o fizeste porque talvez elas mudem alguma coisa.
No fundo acho q deve haver um equilibrio, ser sincero sem magoar. E isso é mto difícil de fazer é verdade.
Não acho que deves estar a ficar frio ou cruel, as pessoas é que deviam ser assim sempre mas preferem não ser.

Anónimo disse...

Eu sempre te conheci assim e é exactamente por isso que te considero muito especial. porque deste o primeiro momento n disseste coisas para agradar mas as coisas que achas certas para ti.
Podem não haver verdades absolutas, mas se nos pedem opinião então devem esperar as nossas verdades, aquilo que achamos e n~ºao aquilo que quem pergunta acha.
Continua assim, sempre.

Adoro-te gajo lindo. E ainda te adorarei mais quando agora fores tu a vir cá acima visitar-me.

Anónimo disse...

Concordo na totalidade.

Gostava só de dizer algo à suspeita:

Tens toda a razão no que escreves. às vezes é mesmo melhor ficarmos calados e guardarmos as nossas opiniões só para nós. E não devemos bombardear os outros com as nossas opiniões. Mas se nos pedem a opinião acho que devemos dá-la sem ser de forma fria. Mas dá-la, sem escondê-la.
Claro que a minha verdade é minha, a sua é sua e a de outros é deles mas se nos pedem a nossa, devemos dá-la, não como a verdadeira mas a nossa. E penso que sobre isto que se refer o texto. E com isso o ser humano não sabe lidar bem. Quer sempre o ego cheio, lambido e não vê que nem sempre assim pode ser. Que isso não é ser-se amigo com "A" grande.
Se se desce na consideração de alguém porque se é sincero, então isso é que é de lamentar.

Faço ainda uma ressalva: A sinceridade deve vir logo, não é tempos depois. Porque isso é estar a mentir e depois então mais tarde ser-se sincero e achar-se que isso supera e desculpa tudo. Isso é bem pior. Isso sim, é mais grave ainda.

Eu continuo a preferir a sinceridade, mesmo que isso doa. Prefiro isso do que panos quentes para aconchegar egos.

Grande texto, meu querido.

Anónimo disse...

Para o Pedro:
Eu sou uma pessoa sincera. Quem me conhece sabe que não coloco panos quentes em nada. Sou sagitário e, quem liga a isto dos signos, sabe que a sua principal característica é o de dizer o que pensa, às vezes nas piores alturas!! De qualquer forma, acho que a sinceridade, como qualquer outra característica da personalidade, deve ser usada de forma equilibrada e com bom senso. Dizer sempre o que penso, a qualquer pessoa, em qualquer altura, não é boa política. O discurso politicamente correcto do ser sincero em qualquer situação e fiel a si próprio e aos outros, fica bem no papel, mas traz péssimos resultados no dia a dia. Na vida real. Tenta ser sincero com o teu patrão, com colegas de trabalho mais antigos na empresa ou em qualquer situação de negócio!!...
Quanto aos amigos, é óbvio que a sinceridade é o lema. E eu sou sincera e leal com os meus amigos. Agora, que ganho eu em dizer a uma amiga minha que vem toda eufórica porque comprou uns óculos que ela adora, que até não foram nada baratos, que os mesmos são horripilantes?! É a minha opinião, que não condiz com a dela e poderá não condizer com a da maior parte das pessoas. Não acho necessário dizer-lhe que acho os óculos péssimos. Também não lhe vou dizer que são maravilhosos, mas fico contente por ela se sentir bem com a compra que fez! Acho que em merdices destas, não vale a pena estar a usar de toda a sinceridade, por uma questão de bom senso e de aceitar que o gosto dos outros é diferente do meu. Claro que em coisas mais sérias, a sinceridade deve estar à frente de tudo, custe o que custar, mas é necessário avaliar cada situação.

Anónimo disse...

Para a suspeita:

Obrigado por ter respondido. Gostei muito da atenção.
Gostava de dizer que concordo e entendo perfeitamente o seu ponto de vista. Não é fácil, de facto, gerir a sinceridade.
De qualquer forma eu estava a referir-me a situações de amizade, mais concretamente. Não tanto a situações profissionais ou outras. E aí, com os amigos, acho que a sinceridade é essencial. Claro que se pode evitar dizer algo que possa magoar alguém, aí é preferível calarmo-nos ou fazê-lo com especial atenção, concordo. Até porque se não nos pedirem a opinião, não faz grande sentido termos que ser sempre sinceros. É escusado, sobretudo se isso ferir alguém.
De qualquer modo penso que o post se refere, essencialmente, à sinceridade na amizade. E aí, penso que estamos os 3 de acordo.

Mais uma vez, obrigado pelo seu comentário, suspeita. Gostei mesmo. :)

Anónimo disse...

Para o Pedro:
Não tens nada que agradecer e... por favor, trata-me por tu!! Estou a sentir-me uma verdadeira trintona! E olha que estou a ser sincera! ;) Beijinhos

Anónimo disse...

Este texto é muito interessante e tem tanta verdade em si mesmo ... tu que me conheces, sabes de situações a que me possa estar a referir ... bem, também não será ao acaso que a minha sobrinha diz que apesar dos meus defeitos eu sou a pessoa mais verdadeira que ela conhece. Eu disfarcei na altura a minha emoção com o que ela disse mas após isso, pensei bastante sobre a sua opinião ... de facto e avaliando n situações à minha volta acho que sou bem sincero e verdadeiro, embora não faça disso um cavalo de batalha, isto é, não me dedico a demonstrá-lo invariavelmente em toda e qualquer situação, depende de muitos factores, muitas variáveis que se articulam numa situação determinada que convém sempre ponderar ... por exemplo, pessoas dispensáveis para nós, inflexíveis e em situações sem grande relevância, provavelmente dispensam a perda de tempo em sinceridades ...dispensam mesmo a nossa atenção; já com pessoas amigas, devemos o mais possível fazer uso dessa sinceridade, mas também com moderação, considerando algumas susceptibilidades da pessoa em causa e o nível de importância a dar a determinados assuntos, alvos de discórdia.
Sobretudo, penso que deve sempre imperar a razoabilidade em tudo, sem excessos ...
Lembras-te quando eu era genuinamente sincero e magoava algumas pessoas? muita gente me "bateu" considerando-me mal-educado ou desagradável, no entanto, estava ali Eu, na mais pura essência, sem probabilidade de atraiçoar ninguém ...
E de facto, é importante que se diga que ninguém que seja sincero em tudo conseguirá sobreviver em sociedade, a sinceridade extrema é mera utopia ... ninguém suficientemente inteligente é totalmente sincero por exemplo, no emprego, se as coisas o(a) desagradarem ... é bom que se pense nisso ...
Claro que pelo que conheço de ti, acho bem que reforces essa característica e quem não gostar... paciência, é porque não merece a tua atenção, porque já deveria conhecer-te ou pressupor a qualidade da pessoa que tem à frente ... mas também julgo que não deverás entrar furtivamente por aí ... penso que deverás ter algumas reservas ...e na situação descrita, esquece ... precisam-se pessoas interessantes, não pessoas giras que são muito bem, muito chiques, bem vestidas e perfumadas, saem à noite para exprimir um discurso vazio e futil e depois o sumo é pouco ... com essas nem precisas preocupar-te que te ponham de lado pela sinceridade ... simplesmente esquece