Mais um dia...

Desceu a avenida que tanto adorava. Ainda era noite, o que não ajudava em nada ao imenso sono resultante de uma noite mal dormida. Mal abria os olhos, tinha frio ao ponto de se recusar tirar as mãos dos bolsos para ligar o ipod e ouvir uma música que o ajudasse a acordar. Aquela hora, ainda com poucos pela rua, já se sentia um certo stress. Uma mulher de passo curto apressado, um homem de passada ainda mais curta mas rápida... poucos ali mas prestes a juntarem-se a muitos na convergência de ruas onde aquela ia terminar. Ruas a juntarem-se ao largo bem mais povoado. Trabalho e estudos eram os destinos de quase todos, mesmo todos. Entravam e saíam de comboios e de autocarros. Tão cedo e já tantos.
E é nestes meios de locomoção que tudo acontece.
Como se não bastasse a noite mal dormida e o cedo da hora, tinha-se enganado a programar o despertador e chegou cedo, demasiado cedo, à estação. Tão cedo, com tal cansaço que nem para stressar tinha energias. Isso era bom. Observava a pressa alheia. Apagou o cigarro e entrou no quentinho abafado e cheio de cheiros do comboio.
Sentou-se e não quis ouvir música. Pôs-se a observar. Uns dormiam, outros liam, uns arrastavam palavras muito baixinho, outros olhavam para aqui e para ali minutos a fio, como que para o infinito.
Observava o rosto de todos aqueles que estavam ao alcance da sua vista e não viu ninguém a sorrir. Próxima estação e mais uma mão cheia de gentes. Um cego a pedir. Já não era só no metro, era também já no comboio. “Tenham a bondade de me
auxiliar”, disse ele umas 20 vezes, talvez as primeiras 2 dezenas das muitas que proferiria até ao final do dia. Certamente milhares ao longo de anos. São as primeiras e as únicas palavras que quase todas estas pessoas deixam sair. É triste, muito triste. Tão ou mais triste é que quase ninguém é capaz de tirar sequer uns cêntimos do seu bolso para oferecer ao “desgraçado”.
É triste. Se cada um dos passageiros oferecesse um cêntimo ao homem cego, velhote, arrastado, ele teria uma quantia suficiente para comprar algo que lhe servisse como almoço. Mas não, as pessoas estão fartas, aquelas palavras já lhes entram por um ouvido e voam pelo outro. Fingem que não ouvem, que nem vêem. Continuam no seu silêncio, a olhar para tudo menos para aquele homem. Aquele homem que ali passa num misto de esperança e de desistência. Ele sabe, todos os dias ele sabe, que poucos lhe estenderão a mão e farão tilintar uns tostões naquele copo de plástico velho.
Ele olhava aquela gente com ar triste, mais do que cansado e com sono e pergunto-se: "é este o país a que chamam de altruísta, de boa gente, de grandes nomes e de uma grande História? É este o país que transpira exemplos de tolerância e solidariedade? É este o país de gente simpática, prestável e atenciosa?
Não, pareceu-lhe que não. Mais uma vez discordou da etiqueta comumente colada a este povo. Pareceu-lhe que estas gentes não conhecem o que tais palavras significam. Infelizmente, vivemos num país de cada um por si e Deus, ou quem seja, por todos. Onde estão os valores que pautam a nossa vivência?
Sim, outros países são assim, mas nós somos conhecidos por não ser. Sim, ele também muitas vezes não dá um cêntimo, mas muitas vezes dá. Sim, as pessoas estão fartas de pedintes e marginais, mas muitos deles não têm outra possível forma de vida. Mas sim, numa carruagem com dezenas de pessoas, nem uma ajudou aquele velho, poucas olharam para ele, quase todas fingiram não vê-lo.
E lá continuaram a entrar e a sair, sempre com um ar de quem não espera um dia feliz. De quem não tenta fazer por isso. De quem se deixa abraçar pelo nascer do sol de forma, mais um uma vez, triste.
É mais um dia...

5 comentários:

TheTalesMaker disse...

Adorei esta imagem do post.
Quanto ao post em si, deixa-me só dizer umas coisas. Não é que eu não tenha pena de algumas destas pessoas que pedem nos transportes públicos, de facto tenho. Quer tenham ou não algum tipo de deficiência ou não. São por vezes seres que precisam apenas de serem encaminhados, salvos daquelas vidas e situações, tal como os sem-abrigo. Mas depois de coisas que se ouvem, digamos que uma pessoa fica sem saber o que fazer.
Sim, não o faço muitas vezes, mas também já dei esmolas, a velhos principalmente.
Vou contar um caso. Durante uns tempos trabalhei com um invisual (cerca de 1 anos, mas não seguido). O facto é que ele me contou uma história que me chocou. Que uma amiga dele, também invisual, por não trabalhar, recebe um subsídio do estado, devido à sua condição, mas que para além de não receber assim tão pouco, punha-se a pedir esmola na zona da Feira Popular (isto já me foi contado há uns anitos). Resultado? Ao final do mês, ela levava para casa muito mais que o meu colega que trabalhava. Contou-me ele que a amiga, num espaço de 2 meses, à conta de esmolas reequipou a cozinha toda, e com electrodomésticos de marcas caras.
Claro que isto é uma história entre muitos casos, mas dá que pensar, não?

Hydrargirum disse...

É assim mesmo...Nobody cares, nobody gives a damn....!!!

E depois perguntam-me se sou patriota?....

://////////////

É tão triste...só se vive uma vez...e tanta gente nem a essa vez tem direito!:/

Anónimo disse...

Eu confesso que muitas vezes me comporto como as pessoas de que falaste... :(
Mas se todos dessemos uns 5 cêntimos já ajudava muito ao dia destas pessoas que, muitas delas, não têm mesmo outra alternativa de vida.
Este post deixou-me triste e pensativa.

Anónimo disse...

Eu não dou sempre mas dou muitas vezes e sinto-me bem quando o faço.

Este post é muito incomodativo, devia ser publicado.

Anónimo disse...

:( Só consigo fazer esta cara.