A rua, o chapeu, o cigarro e o post.

Ultimamente, cada vez que subia aquela rua, lembrava-se de algo. Um conjunto de imagens, flashes, ondas que na sua cabeça se transfiguravam em algo passado que, parecia tão recente. E esta noite não era diferente. Comprou tabaco nos Armazéns do Chiado. Deambulou pela sua Fnac e saiu. O centro comercial estava cheio, a entrada também. Os habituais grupos de pessoas que ali faziam os seus pontos de encontro para o início de uma noite. Não ouvia ninguém. Não ouvia as miúdas com cores coloridas e brilhantes, já aquela hora histéricas, porque hoje, longe da alçada dos pais, tinham vindo à cidade para a “night”, quase transparecendo orgamos de euforia. Não ouvia os loiros velhotes turistas que esperavam orientações de um qualquer guia. Não ouvia o trio pseudo-intelectual com óculos de massa que fingia ignorar as miúdas com ganchos de borboletas na cabeça e sandálias douradas que falavam alto neste dia de festa. Não ouvia os dois rapazes que se tinham acabado de aproximar um do outro com um sorriso nervoso, deixando perceber que apenas se conheciam das andanças do messenger e que ali estavam, numa sexta-feira à noite, para a prova de fogo. Não ouvia o grupo de rapazes e raparigas que, aquela hora, ainda cedo, já empunhavam garrafas de plástico, cheias de litro e meio de vinho e que, certamente, faziam questão de proferir, bem alto e audível, um grande número de asneiras. Não ouvia os góticos que muito erectos, de pele alva e vestes negras se iam juntando como se noutra dimensão vivessem. Sempre gostou de observá-los. Havia algo de gótico em si, sempre o sentiu desde muito novo.
Só ouvia a música que saía do seu ipod. “Rent” era a banda sonora.
Adorava aquilo. Andar pelas ruas de Lisboa, no meio das pessoas, sem ouvi-las.
Olhou para a rua de calçada que se estendia entre lojas, por ali acima, até à esplanada da Brasileira. A rua estava mesmo cheia. Uns desciam, uns subiam, uns conversavam parados, outros ali estavam sentados a pedir. Para alguns aquela rua era a sua casa.
À porta dos Armazéns não parou. Abrandou apenas. Inspirou e tentou não lembrar-se daquele “algo”. Mas lembrava-se. Ultimamente era assim. E aquela música não ajudava em nada. Mas não a tirou.
O cenário era idêntico ao de anos atrás. E as duas realidades misturaram-se no mesmo espaço. Algo nervoso mas descansado por não ser real, lá subiu a rua. Esperavam por ele algures. Mas isso também não importava ali. Importavam duas figuras passadas que lá mais acima esperavam por ele. Um baixo, sorridente, divertido e muito mexido e outro alto, com um casaco dos ombros aos pés a tapar as cores que estavam por baixo, com um chapéu-de-chuva que ligava a sua mão direita ao chão de pedras quadradas. Tinha um ar aristocrático, tinha. Mas era, sobretudo, um ar snob, convencido, de quem se acha melhor do que todos.
Era esta imagem que, ultimamente, o acompanhava cada vez que subia aquela rua. Os dois lá em cima à sua espera. Este flash e a do rapaz baixo e do rapaz alto, após as apresentações, a andar, uns dois ou três metros à sua frente, em direcção ao Bairro Alto. Um andava, sim. Mas o outro desfilava. Era tão irritante aquela postura. Porquê aquele chapéu-de-chuva? Aquilo é para usar ou para transportar na mão, não é para ser acessório de desfile. Quem é que ele pensa que é!?
Ele ia atrás a observar aquilo. Não estava desiludido, após algumas conversas de horas no messenger, até às tantas da manhã. Estava irritado...mas algo fascinado. Em que é que aquilo iria dar? Pensava. A verdade é que, no fundo, também sabia que se estava a comportar como outro, o outro também alto como ele. Só lhe faltava o chapéu-de-chuva. Tinha um cigarro. Um cigarro que, aos olhos do outro, era igualmente irritante. Eram ambos irritantes.
Agora, estava ali sozinho naquela rua, já tão perto da Brasileira. Acompanhado apenas pelo seu ipod, pelo “Rent”. Acompanhado pelas imagens de um passado que quase ali conseguia cheirar.
Enquanto a sua mente visualizava estas imagens, outras a elas se misturavam. As imagens de uma página de fundo branco, cheia de letras escritas muitas horas depois daquela noite.
Era assim. Ultimamente era assim, cada vez que subia aquela rua. Parecia tudo tão presente em si.
Chegou junto dos que o esperavam. Cumprimentou quem estava de forma nada educada porque só ouvia a música enquanto via bocas sorridentes a mexer. Mas tinha de acabar de ouvir aquela música que não terminou mesmo quando abrandou o passo ao aproximar-se do local de encontro. Cumprimentou-os e, segundos depois, a música terminou. Aí sim, tirou o ipod do bolso, deligou-o, enrolou o fio e guardou-o na sua mala. Sorriu, pediu desculpas porque não ouviu o que disseram e sentou-se. Ali não se podia fumar. É o mal daquela gelataria. Não se viam cigarros mas também não se viam chapéus-de-chuva.
A noite passou. Mais uma. Falaram da semana mas, claro, os principais assuntos rondavam a nova música de uma miúda qualquer giríssima com um corpo fabuloso, os “dates” de cada um, as tricas, as conversas do messenger com este e aquele, as visualizações dos profiles de não sei quem, as viagens imensas que se fizeram, as dietas de quem se acha sempre gordíssimo, as decorações, uma nova parede pintada que fica o máximo, os ginásios, os ténis fantásticos de não sei quem que são da marca tal, a praia habitual, o não sei quem que acabou de entrar, que é amigo de não sei quem e ex-namorado de outro que trabalha não sei onde, conhecido do que tem o profile whatever e que até viveu com um namorado dez meses, imagine-se o escândalo.
Ele participava, entrava no jogo. Entendia que, depois de uma semana de trabalho, as pessoas querem é descontrair, conversar sobre banalidades, deixar as profundezas de parte, apelar a um certo snobismo que barra toda a parte sentimental que, esporadicamente, espreita aqui e ali, numa frase, num olhar mais genuino, num silêncio, num sorriso, num toque. Há toda uma postura gay instaurada e ele não podia fugir disso. Ou podia? Já lhe tinha acontecido sair dali e ir para casa, ir ver o mar à noite ou, simplesmente, ficar no carro sentado. De qualquer forma tinha a capacidade de ficar, conversar, comentar, sorrir e rir e de se abstrair, de se resguardar em si, sempre que lhe apetecesse.
Quando chegou a casa não tinha sono algum. Ia ver um filme acompanhado de um chá quente. Estava decidido. Estava a habituar-se a estar sozinho no sofá, a apagar sozinho os cigarros, ter apenas uma caneca por perto, a olhar para a tv apenas com os seus olhos.
Antes, desligou o ipod e sentou-se em frente ao computador. Seria rápido. Não o foi. Leu um post num blog que lhe era mais do que familiar. Do outro lado escorriam palavras que ele, naquela noite e noutras antes, sentia aflorar na sua mente sempre que subia aquela rua de calçada. Parecia de propósito. Que ligação era aquela!? Estavam em hemisférios diferentes, separados por um oceano imenso e ainda assim pensavam no mesmo, na mesma altura.
Não conseguiu deixar de comentar. Não conseguiu deixar de escrever, da forma como naquele momento, as palavras se soltavam. Não conseguiu deixar de visualizar uma página branca cheia de escritos daqueles dois e tentou transpô-los.

...
C - Sabes, eu já te amava antes de nos termos encontrado pessoalmente.
B - Não digas isso.
C - É verdade. E tu eras tão diferente daquilo que o ...... me tinha dito no CCB. É verdade.
B - Sim... eu acredito. Eu sinto o mesmo.
C - :)
B - E é tão estranho. Não sei explicar.
C - Não é estranho, sente-se. E os sentimentos não se explicam.
B - Mas quando nos conhecemos odiámo-nos.
C - Lol. Sim, eu achei-te insuportável.
B - Pois, eu também te achei. Com aquele casaco preto comprido e o chapéu-de-chuva. A desfilar muito snob na rua. Irritou-me.
C - Mas depois...
B - Depois havia ali qualquer coisa, não era?
C – Era.
B - Olhei-te de uma ponta à outra. Aquela pulseira do Marlboro, a camisa às riscas, e a tua voz. Granda vozeirão. E não queria que te fosses embora. Mas sabia que ias olhar para trás quando entrasses no comboio, olhei mas não te vi olhar.
C - Mas eu olhei e fiquei com raiva porque não te vi olhar a ti.
B – Lol. E sabia que ias mandar uma mensagem ainda no comboio e que seria para mim. Os outros dois acharam estranho e sem lógica mas para mim tinha toda.
C - E mandei. Sabes, eu senti que a minha vida ali ia mudar.
B - Eu também. Fiquei tão feliz, nem imaginas. E o sonho da varanda...
C - Por isso já te amava.
B - Eu também.
...

Odiaram-se talvez porque se comportavam da mesma forma. Odiaram-se talvez porque até eram tão parecidos aos olhos de quem observa as atitudes. Odiaram-se porque talvez preferissem odiar para não amar. Para não sentir o que já de antes estavam a sentir (afinal, não podia ser assim tão bom). E talvez antes das pernas se tocarem já soubessem que as suas energias, as suas vidas estariam ligadas para sempre.
Hoje, milhares de quilómetros de mar os separam, cruzam-se nos ecrãs informáticos, não se falam. Mas as energias, o amor, entrelaçam-lhes as mentes, juntam-lhes as almas como se as pernas se estivessem a tocar...naquele bar... naquela varanda de mármore branca.

Já não foi à sala. Já não foi ver nenhum filme. Já não bebeu nenhum chá. A sua alma estava cheia. Foi-se deitar e sentiu um cheiro que queria sentir. E era tão fácil senti-lo.

9 comentários:

Anónimo disse...

Muito bonito. Conseguimos acompanhar as cenas.

Conheço bem essa rua e muitas histórias já ali se devem ter passado mas esta é muito bonita atendendo ao que acontece depois.

Abraço

Anónimo disse...

Será que se odiaram mesmo ou já havia ali muito amor?
E será possível duas pessoas amarem-se se nem se conheciam na realidade?

Anónimo disse...

A sua alma estava cheia e isso pode ser muito bom e muito mau.

Adorei o post adorei, adorei.

É tão bom começar o dia assim a ler coisas destas.

Ai, ai, o amor é lindo.

Anónimo disse...

Não sei o que se pode comentar ao ler um texto assim. Apetece-me pegar nas várias partes e comentar uma de cada vez. Esta post dava vários post com vários comentário. Limito-me a dizer-te que é post muito especial.

Parabens

Anónimo disse...

Agora é esquecer pq a vida continua...

Anónimo disse...

Perante algo tão bonito, de facto as conversas de fim de semana dos gays são meras poeiras que servem de muito pouco à terra firme de uma história assim São insignificancias perante a grandiosidade de amar alguém. Para mim são insignificantes perante o que quer que seja.

Contudo não posso deixar de te dizer que aquilo que te tenho dito mas de outra forma: Existem outros chapéus de chuva e outros que não se incomodem com o teu cigarro.

Se é possível amar alguém só por conversar no messenger? Eu até há pouco tempo diria imediatamente que não.

Anónimo disse...

Não acredito que se possa amar sem se conhecer a pessoa pessoalmente, mas também acredito que um amor assim que nitidamente se vê que deixou marcas profundas não acaba pelo menos tão cedo. Se se ama deve-se viver esse amor.
Se ainda se amares corre pela rua acima e vai ter com o alto do chapéu de chuva, e ele se te amar que corra rua abaixo para ter com o alto do cigarro. Larguem o chapéu e o cigarro e vivam o vosso amor.
Se é passado e já nao é sentido por ti ou pelo outro, então nunca te esqueças desta história que me fez cair uma lagrimita.
Quem me dera viver algo assim e contá-lo com tanto sentimento.
É muito melhor ver um filme e beber um chá ao lado de quem amamos do que sozinhos.

Anónimo disse...

O que, tu? E eu aqui tão linda e gostosa. Tu que és o homem da minha vida, já vi que de ti não levo nada. lolllllloollll Estou a brincar...

Meu lindo, deixo-te aqui uma parte de uma música que ouvi no radio e que agora me lembrei de vir aqui deixar por causa do guarda chuva. Não sei se gostas da cantora mas se puderes ouve a musica Umbrella da Rihanna.

When the sun shines
We’ll shine together
Told you I'll be here forever
Now that it's raining more than ever
Know that we still have each other
You can stand under my Umbrella

Contra todas as agruras, por muito que seja a chuva, há sempre um guarda chuva para se meterem debaixo.

Adoro-te e quero muito que sejas muito feliz.

margarida disse...

Isto sim..está muito, muito lindo!É bonito, faz lembrar memórias de uma vida passada, também gostava de ter umas assim tão vivas...faz assim... continua a vivê-las ;)