Capitulos

Um dia alguém lhe disse:

A vida é como um livro, feita de capítulos. Quando um termina, há outro a seguir. E é esse que interessa ler. O resto ficou para trás.

E ele ficou a pensar naquilo. É uma frase bonita, daquelas frases feitas bonitas, sim. Daquelas frases que servem para nos fazerem sentir bem, até esboçar um sorriso. É para isso que foram feitas. Para isso e para nos encher as caixas de correio electrónico. Mas seria uma boa metáfora?

Mesmo que o final do capítulo seja triste, mesmo que seja doloroso, mesmo que seja estranho, mesmo que seja confuso... depois da última frase, da última linha, da última palavra, da última letra, do último ponto, do último restício de tinta impressa, há sempre um outro capítulo a seguir, uma nova esperança, um novo olhar, um novo ar, e é isso que importa, pronto. É a mensagem base, a mensagem a retirar.

Contudo, pensou:

Há livros, em que, de capítulo para capítulo, a história muda, os ambientes mudam, os sentimentos mudam, as realidades mudam, as vidas mudam. Os capítulos distinguem-se na total perfeição. Há quem lhes atribua adjectivos como criatividade, originalidade, intelectualidade... Mas serão, esses, livros ou apenas conjuntos de textos? Onde fica a conceito de livro, todo o conjunto de palavras que, no fim, lhe dão consistência e unidade? Mesmo que os capitulos mudem, para ser um livro, terão de fazer sentido no fim. Um livro, tal como a vida, não é um conjuntos de páginas escritas e encadernadas, umas a seguir às outras. Mesmo que os capítulos não tenham uma aparente sequência lógica, no fim, quando as letras encerram a última página, tem de haver uma ligação, uma lógica, um significado. Se assim não for, então não será um bom livro, nem um livro será. Comparando com a vida, não será viver.

E percebeu que, tal como na vida, as livrarias têm livros e folhas escritas encadernadas a que chamam livros. E desses últimos ele não gostava. Esses últimos ele não queria para si. Podiam valer muito, mas valiam como textos singulares, uns por cima dos outros, dentro de uma encadernação. Ele gostava da vida cheias de fases, não gostava de fases soltas a que muitos talvez chamem de vida.

E percebeu que não, que o que alguém, um dia, lhe disse não é uma boa metáfora.

7 comentários:

Anónimo disse...

Eu acho que a vida não é como um livro. A vida tornar-se-á um livro no momento em que morrermos, no momento em que dermos o suspiro final. Aí teremos um princípio, um meio e um fim. Entretanto somos um livro em aberto. Se os capítulos passados deixam de interessar? Não me parece. Afinal o que seria de nós sem as memórias. Sem o tempo que perdemos a recordar as coisas do passado, o que fizémos, o que vivemos, o que conhecemos, os paises que visitámos, o dia em que entrámos na faculdade, o dia em que tivémos o primeiro trabalho, o dia em que vimos um filho nascer. E quantas vezes não lemos o mesmo livro mais de uma vez? Ou voltamos a ler capítulos de um livro que achámos bonito? A verdade é que se pensarmos demasiado no que é a vida acabámos por não vivê-la.

NO DAY BUT TODAY

If I ran away, I'd never have the strength to go very far. How would they hear the beating of my heart? Will it grow cold? The secret that I hide, will I grow old? How will they hear? When will they learn? How will they know?

Anónimo disse...

Nunca tinha pensado nisto assim. Mas é mesmo.

Anónimo disse...

Há partida parece mesmo que a frase faz sentido mas depois tu começas a desmontar e deixa de fazer sentido. Que bem, mto bem.

Anónimo disse...

Dita é bom e muito importante pensar mesmo que seja demasiado porque pensar faz parte da vida, é vivê-la também.

Viva os pensadores e as cabeças pensantes.

Anónimo disse...

Sempre detestei essas frases feitas que ficam bem nas conversas de café e que fascinam todos, a mim não fascinam. São frases usadas por quem tem pouco onde se agarrar. Claro que há excepções mas aí percebe-se pela pessoa que as diz e como as diz.

Muito bem analisado. Aprecio tanto a tua mente.

Anónimo disse...

Excelente. Acho que vou pensar nisto o dia inteiro.

Um beijinho

Anónimo disse...

Julgo que sei perfeitamente onde quiseste chegar com este teu texto e partilho inteiramente da tua posição...penso até que o teu texto é uma excelente metáfora...quem valoriza as pessoas como verdadeiros seres humanos não concebe a vida como um conjunto de capítulos sem a tal unidade ou linha condutora, como se se fechasse uma porta, se esquecesse tudo o que ficou para trás e recomeçasse do zero, assumindo uma nova entidade, quase uma despersonalização ... quem verdadeiramente amou não esquece, não apaga com essa serenidade ...claro que tem de existir um sentido, uma certa lógica inerente às coisas, que lhes dê uma certa consistência ...