12 Patas

Ela tem 6 anos. Ele 2. Ela é cinza (os veterinários dizem que azul). Ele é branco como a neve mais branca. Ela é Europeu Comum (os veterinários dividem opiniões). Ele é Europeu Comum (sim, porque os gatos têm sempre raça). Quando se conheceram o convívio não foi fácil, nada mesmo. Ela passava com altivez, snobismo, raiva, por ele como que afrontada pela presença de um novo membro da família. “Quem é este? Que coisa é esta mínima que agora aqui chegou? Ponha-se no seu lugar, ora! Era o que faltava! Aqui quem é a senhora da casa sou eu!” Ele, tão pequenino, ainda com 3 manchinha negras no topo da cabeçita, encolhia-se todo perante tal sublime ser longilíneo e poderoso que o olhava de soslaio ou, por ele passava, demonstrando completa indiferença. Ela despertava-lhe a atenção e, de quando em vez, lá ele arriscava uma ou outra brincadeira. Brincadeiras que lhe valeram um urgente e nervoso voo ao Hospital Veterinário do Restelo e, dias depois, um corte pequeno numa orelha que ainda o tem.
Agora são crescidos. Não só se toleram, como se adoram. Ela continua com a sua postura superior. Ele retribui com uns carinhos, uns beijinhos umas patadinhas. Claro que apenas se ela permitir. Às vezes ele olha-a como que dizendo: “És mesmo tonta. Tanta pose para quê? Essa mania de ser a princesa do castelo e arredores.” Sim, é assim que ela se comporta. Qual princesa mimada que quer os mimos todos só para si.
Ele já é maior que ela. Ela já foi mãe por duas vezes. Ele não foi ainda pai. Ela não foi ainda esterilizada porque o senhor doutor dos bichos diz que, como já foi mãe, pode continuar a tomar a pílula. O dono tem dúvidas disso. Ele ainda não foi castrado. Será, um dia, quando as finanças o permitirem e a situação mudar. E que situação? Algo estranho, dizem todos.
Ele não se interessa por ela. Interessa-se para dormirem, por vezes, lado a lado, em cima da mesa da sala, ao fim da tarde, com o sol quentinho a entrar pelas grandes janelas. Interessa-se para, quando se cruzam, lhe dar uns beijinhos se ela o permitir. Interessa-se para imitá-la sempre que o dono chega a casa, sempre que ela pede comidinha, sempre que ela mia em redor do dono, sempre que ela tenta entrar para dentro da cama, mal a luz se apaga e o dono procura dormir. Interessa-lhe imitá-la, observá-la, conviver com ela, ver o que ela faz e porquê. Não se interessa por ela como um gato se interessa por uma gata. A sua gata é outra. A sua gata é uma doninha. Uma doninha de peluche comprada no Ikea. Uma doninha que ignorava nos primeiros tempos de habituação a um novo ambiente. Um lar aconchegante, humanos aconchegantes, brincadeiras aconchegantes. Um mundo que começava a ser o seu. Uma doninha que passou a amar. Sim, a amar. Dorme com a doninha. Dorme ao lado dela. Dorme abraçado à doninha. Sim, literalmente abraçado como dois humanos que se amam se abraçam. Quando se lava também a lava. Quando se deita em cima da cama, no espaço vazio, leva-a consigo. Quando a doninha fica fechada, por engano, noutra divisão, ele desespera, mia com tristeza e dor. Quando a doninha não está junto de si, sofre. Quando o dono, por graça, a atira ao ar, os seus olhos arregalam de pânico e raiva pelo humano. Vai imediatamente ter com a doninha, caia ela onde cair. Toca-lhe, cheira-a, lambe-a, agarra-a com os dentes, como que a dizer: “Estou aqui, não te preocupes, estás salva”. Se o dono teima em não se afastar, afasta-se ele levando-a consigo, soltando uns sons que soam a “Parvo! Não faças isto. És mesmo estúpido. Olha que a magoas!”
A doninha está desgastada, os olhos já mal se notam, o pêlo está um caos, mas é a sua doninha e ele não desiste dela por nada. Valerá a pena o dono procurar uma nova? Procurar uma que a substitua? Não. Nem pensar. Aquela é a sua doninha. É dele, de mais ninguém. Ela é que tem as marcas, o cheiro, o toque que ele conhece. Nunca outra significaria tanto para ele, nunca.
Quando a outra ela de 6 anos, em tempos de cio, se roça em tudo, se roça no dono, no sofá, nos tapetes, nos móveis, na cama, nas portas, em tudo aquilo onde se pode roçar, quando essa ela mia, mia desalmadamente, a culpa é do dono que, por vezes, se esquece da dita pílula. A culpa é do dono que teima em não dar-lhe o pequenino objecto branco de 15 em 15 dias. A culpa é do banco como a neve que a observa meio atarantado, a circunda meio fascinado, a toca meio espantado, a cheira meio curioso, mas disso não passa. Ela quer, ela faz tudo para o cativar, para o envolver, para o seduzir mas ele, minutos depois, afasta-se e lá vai, lá vai ter com o seu amor que está no exacto local onde ele o deixou. É para o amor que ele volta. É para a sua doninha adorada.
É um animal. É um felino. É, supostamente, irracional. A cinza oferece-se da forma mais apetecível imaginável. E ele? Ele escolhe um boneco de peluche.
Ele também tem as suas necessidades. Com quem as satisfaz? Com a sua doninha. Cheira-a, morde-lhe o pescoço com carinho e faz aquilo que os instintos o incutem a fazer, literalmente, sublinhe-se. O dono, muitas vezes já a dormir, sente os movimentos na cama e sorri. Outras vezes, empurra o casal de pêlos para o chão. Ele não se resigna, não desiste e volta a subir, sempre, 2, 3, 4, 5 vezes, as que forem preciso, sem largar, por um segundo que seja, o corpo de peluche que está a amar de forma mais ou menos “selvagem”, de forma mais ou menos dita “animal”.
Satisfeita a necessidade animal, lava o corpo branco qual neve, de ponta a ponta. Mas primeiro lava o outro corpo já de cor pouco definida. Ajeita-se, coloca a patinha branca sobre a doninha, coloca a cabeçita, já sem manchas pretas de bebé, junta à cabecita já meio disforme da doninha e, exausto, deixa-se adormecer. Tantas vezes nem os olhos já consegue abrir quando a amiga cinza se aproxima. Tantas vezes já nem os olhos abre quando o dono lhe passa a mão pela cabeça, pelo macio pêlo branco. Nem um ronronar sai. Apenas um respirar calmo. Tantas vezes ali fica, simplesmente ali fica, sereno, cansado, a dormir juntinho do seu amor. Isso chega-lhe. Isso é tanto. Isso fá-lo feliz. E ai de quem os separar. Ai de quem tocar na sua adorada doninha. Ela é dele. Ele é dela. O dono é o dono. A cinza é a cinza; aquela que o arranha ainda de quando em vez por ciúme, para mostrar soberania; aquela de quem ele vai atrás quando esta entra para um roupeiro, quando o dono, de manhã, se veste e prepara para sair; aquela que come na tigela ao lado da sua; aquela com quem adora meter-se; aquela com quem apanha sol.
Aquela que se roça em tudo e ele não entende porquê. Não entende nem lhe interessa muito entender. É a sua amiga de sempre. A sua amiga desde que ela o permitiu. A sua companhia felina desde que chegou, muito encolhido e silencioso, dentro de uma mala azul, à nova casa, provocando, de imediato, sorrisos de grande alegria. Mas a doninha, essa, é o seu amor.

7 comentários:

Anónimo disse...

Isto é algo de mto estranho. Nunca tinha conhecido uma coisa assim. Pronto é um gato como o dono...estranho, diferente, original. lol

Anónimo disse...

Esta história é mesmo verdadeira???

Deverias mandar chamar a National Geographic para estudar o caso.

Há muitas histórias de animais que adoptam outros de espécies diferentes, até de predadores que adoptam presas. Animais com gravidez psicológica que adoptam os peluches da casa, espécies com relações monogâmicas para a vida, mas uma história assim nunca soube.
Ele podia fazer sexo com a doninha de peluxe quando a gata não estivesse com o cio, mas daí a não dar importância a uma femea da mesma espécie quando esta está com o cio é que é muito estranho. Será homossexual? Há muitos casos de animais homossexuais. Mesmo assim o peluxe não tem sexo para um animal.

Não sei onde está o racional ou irracional nisto tudo. É mesmo muito estranho ele escolher o peluxe em relação à fêmea da espécie. Nunca soube de nada assim e muito menos num gato.

Anónimo disse...

O gato animal prefere o peluche em vez da gata assanhada oferecida e o gato dono prefere o quê? eh eh eh

Estou a brincar, tirando a parte do gato dono. Agora a sério:

Ele dorme mesmo com o peluche? Abraçados tipo casal? E dá-lhe banho mesmo?

Que cena curiosa.

Festinhas aos gatos da casa (aos 3 se quiserem)

Anónimo disse...

Extremamente interessante e bonito. Até nos animais de estimação tinhas que ser diferente. Tal como o mundo humano, o mundo animal ainda está muito por explorar e descobrir. Mais um caso notável no reino da bicharada.

Já que na bicharada humana o amor está em linha decrescente, ao menos que na bicharada animal ele esteja em ascenção.

Ou muito me engano ou este felino tem muito a ver contigo...

Anónimo disse...

Grandes lições de vida nos dão os animais.
Além de extremamente inteligentes e com personalidades muito fortes fiquei a saber que até os gatos quando amam, amam, venha roçar-se quem vier.
Em sequência de um outro post que escreveste, aqui está a prova de que o prazer emocional do amor pode superar o físico.
E é preciso um gato para provar isso.

Anónimo disse...

Quando leio coisas destas cada vez mais percebo que o ser humano tem muito ainda que aprender com os animais.

Quem são os irracionais afinal?

Gatinho branco de neve parabéns 2 vezes. Um parabens pelo teu amor e dedicação e um por teres o dono que tens.

Anónimo disse...

E quando é o nosso amor, é o nosso amor e não há volta a dar façamos o que façamos, digamos o que digamos.

Nunca deites essa doninha fora. Não faças esse pequenote perde-la. Nada nos deve afastar do nosso amor, nada.