Habitos

Tinha perdido o hábito de ir à praia. No Verão, a praia irritava-o pelo emaranhado de gentes, de chapéus-de-sol, de toalhas, de barulhos. Não era ali que gostava de estar envolto na multidão. Uns deitados ao sol, outros a correr, uns a jogar, bolas por todo o lado, crianças a chorar, velhotes a ouvir rádio… Quase sentia que a praia, na sua beleza natural, era invadida. Já para não falar do trânsito caótico à chegada e à partida. Os tão falados ambientes de engates de praia, de que alguns conhecidos falavam, nunca o fascinaram. Achava deprimente e triste homens casados que deixavam mulher e filhos na areia ao longe e lá caminhavam para a sua actividade predatória a algumas centenas de metros. Depois voltavam para assumir o papel de chefe de familia perfeito. Estas eram realidades que não o moviam.
Mas ali estava, na praia. Queria aproveitá-la enquanto o Verão não chegava, e com ele a amálgama de humanos no seu ritual de uma quase procissão.
Entardecia, o sol ainda estava por se esconder. Sentia uma brisa algo fria que o agradava. Ali sim, um cenário perfeito. Assim sim, gostava da praia. Tinha voltado a este hábito. A praia fazia-lhe bem. Sentia-se quase noutra dimensão da realidade diária em que vivia. Este hábito voltava a fazer parte de si. A praia já havia sido tão, mas tão importante para ele. Já o tinha aninhado em tantos momentos.
Desta vez não tinha levado o ipod. Não queria música. Se a quisesse, ele mesmo cantaria uma melodia qualquer. Adorava olhar o mar, olhar o horizonte e deixar correr na sua cabeça uma música qualquer apropriada ao momento. Já o estava a fazer. Olhava o horizonte e já, na sua mente e entre dentes sussurrava o “Blower's Daughter”.
Estava sentado, calças enroladas acima dos tornozelos, pés semi-enterrados na areia fria. Sabia bem. Estava ali sozinho. Era bom estar ali sozinho na praia deserta.
De repente, a uma velocidade extrema, quase a da luz, sentiu-se catapultado para a frente. Atravessou a linha de água, a plataforma continental, voltou a ver terra, a América, novamente água, a Ásia, a Europa, Espanha, campo, estradas, casas, carros, prédios, estrada, areia e sentou-se. Novamente o azul do mar. Mas entre ele e esse azul, estava ele. Sentou-se atrás dele mesmo. A observar-se a si mesmo. Ele mesmo atrás dele e ele mesmo à sua frente. Tinha percorrido, em segundos, uma linha paralela ao equador. Uma linha localizada no hemisfério norte. Ali ficou a olhar para as suas costas, para o que trazia vestido. Só por um minuto. Sublimou-se. Era só ele, novamente ele na praia. Aquele que já lá estava há uns 20 minutos.
Ao longe viu um casal. Uma mulher e um homem. Duas pessoas e dois cães. Foram andando pela praia, na sua direcção, sem dar por ele. Tentou desviar a atenção daqueles quatro, mas um dos cães desatou a correr na sua direcção, quando já estavam mais perto de si. Correu que nem louco, com aquela alegria com que os cachorrinhos correm. Ele chamou-o, produzindo um som com os lábios apertados. Mesmo que não chamasse, percebeu que o bicho a ele se dirigia.
O cão atirou-se literalmente para cima dele. Fez-lhe uma festa, e outra, e outra…o cachorro estava eufórico, divertido. Patas em cima das pernas, cauda a abanar, lambidelas na cara, areia já por todo o lado. Riu com aquilo.
- Flopi, chamou a rapariga. Quem é que põe um nome destes ao que quer que seja, pensou ele. Flopi!?
Agora, mais perto, dava para ver que era um casal novo. O outro cão, preto, porte médio, raça indefinida (vulgo rafeiro), vinha ao lado dos dois, com orelhas espetadas, alerta para o que se passava ali.
Aproximaram-se. Ficaram parados, em pé, a uns três metros. O cão preto a rondar o cenário das festas.
Rapariga: Flopi, larga o senhor. (é engraçado como, em situações destas, usa-se sempre o “senhor” quer o alvo tenha 16 ou 80 anos)
Rapaz: Flopi, anda para aqui. Este cão!!!
Ele: Não faz mal. Está só a brincar. É cachorrinho…é natural. Não faz mal, pois não, seu maluco!?
Rapariga: É que ele ainda é bebé. Tem 4 meses. Quer é brincadeira.
Rapaz: Incomoda toda a gente. O Teodoro é mais sossegado.
Rapariga: Tá bem, mas ele já é adulto, o Flopinho é pequenito.
Ele: Teodoro! Que engraçado, dois nomes tão diferentes.
Rapariga: É que o Teo já é do André há 6 anos e foi ele que pôs o nome. O nome Flopi fui eu que pus a este doido. O André ofereceu-me quando fizemos um mês de namoro. Era tão pequenino com 2 mesitos.
“O que?” pensou ele, “mas o cão tem 4 meses! Eles namoram há 3 meses e o gajo já lhe ofereceu um cão?”
A rapariga deve ter percebido a sua cara de espanto e aprontou-se logo a explicar, sorridente.
Rapariga: Foi muito giro! Começámos a namorar há 3 meses. Foi amor à primeira vista, como nos filmes. Quando fizemos um mês o André apareceu-me com o Flopi. O Flopi é um labrador creme e o Teo é preto, rafeirito (como se ele não visse isso, logo ele que adorava conhecer as raças de cães). E agora vai ser nosso para sempre. Nós passeamos com ele e com o Teo para que eles se habituem mais um ao outro. Mas eles já se adoram, claro. Para quando formos viver juntos. Os pais dele estão na casa do norte e ele está a viver sozinho desde que entrou para a faculdade. Agora já acabou o curso e já trabalha. Está sozinho por enquanto, não é, “mor”?
Rapaz: Sim, mas deixa lá o senhor. Tu também...quando começas a falar nunca mais te calas. Ela conta isto a toda a gente. Vá, vamos!
Via-se que a rapariga adorava contar aquilo, a sua linda história. Via-se que, por ela, contava tudo ao pormenor, dia após dia, desde que se conheceram.
Rapariga: Oh, parvo. A minha mãe não acha lá muito bem, mas nós já decidimos. Vamos viver juntos. É que ela não percebe que, eu e o André, parece que nos conhecemos há anos. Diz que eu sou nova, que o André já trabalha mas eu não, que nos conhecemos há pouco tempo. Até diz que o Flopi vai estragar o apartamento todo. Desculpas!
Ele: Mas ele quando crescer porta-se bem, não portas, menino? Aí já não vai destruir nada (fez mais uma festa ao cachorro, que não o largava)
Rapariga: Sim, porta, claro. É como o Teo, que é um santinho em casa. O Flopi é que está habituado ao jardim da casa dos meus pais, onde vivo ainda. Mas habitua-se que é um instante.
Ele: Mas vão viver juntos…quando?
Rapariga: Para o mês que vem, quando fizermos 4 meses de namoro. Já combinámos. Vai ser nesse dia. A casa é pequena mas dá. Já mudei algumas coisas para lá. Vai ser a nossa casa. O André trabalha e se for preciso eu vou trabalhar também.
“Meu Deus, 4 meses e já dois animais!”, pensou ele.
Rapaz: Não vais nada sair da faculdade para ires trabalhar. Era o que faltava! Já te disse! Flopi, larga o senhor, anda, vamos embora.
Rapariga: Logo se vê depois isso do dinheiro! Se eu quiser deixar de trabalhar, deixo, ora! Tu não mandas em mim.
Rapaz: Vá, vamos lá mas é embora que já é quase de noite.
Voltou a sentir-se catapultado à velocidade da luz, desta vez no sentido contrário. Areia, estrada, prédios, carros, árvores, estradas, Espanha, Europa, Ásia, azul, América, oceano, linha de água, areia e, novamente sentado. Agora era só ele. Não ele atrás dele, não ele à sua frente. Ele.
Os dois jovens já não estavam ali. Já iam ao longe, de mãos dadas, com os cães ao pé. O Teodoro a trotar, o Flopi aos pinotes entre este e os jovens.
Levantou-se. Na esperança de que o ouvissem, gritou: Não façam isso! Estão loucos? Ingénuos, é o que vocês são. Tu és parva, rapariga? Qual história de filme, qual quê? Pensas que a vida é assim? Vais viver com um rapaz que conheces há tão pouco tempo? Achas mesmo que se conhecem há anos? Conheces o quê? Não conheces nada! Burra, até pensas em largar os estudos, se for preciso? Se fizeres isso vais-te arrepender tanto. Acorda! E tu, rapaz, és estúpido ou quê? Começas a namorar e ofereces logo um cão? Não vês o que isso acarreta? Um cão não é um ramo de flores, um cd ou um livro. E quando se separarem, como é que vai ser? Lembraste-te, por acaso dos animais? Ela adorará o preto, tu adorarás o creme. Eles vão viver juntos, criar hábitos juntos, serão uma família, não percebem isso? E depois vocês vão separá-los? Estão a fazer tudo à pressa. Que anormais! Os animais sofrem, sabiam? Idiotas! São mesmo idiotas, vocês! Têm cérebro para quê? Para substituí-lo pelo coração? 3 meses e já estão a entrelaçar-se assim, levando outros seres atrás? Vocês é que são os irracionais, não eles.
O cachorro creme, que o tinha enchido de areia, foi o único que parou e olhou para trás, para ele. Apeteceu-lhe chamá-lo, pegar nele, correr para o carro, levá-lo dali, daqueles dois. Salvá-lo daquele futuro.
Voltou a sentar-se. Apercebeu-se que não tinha dito nada daquilo, afinal. Só havia pensado. Ainda bem. Não lhes quis destruir o sonho. Voltou a olhar. Lá iam eles. Só o Flopi, de segundos em segundos, parava, esticava a cauda e olhava para ele, atento por segundos. Parecia hesitar entre o que fazer. Ia ou ficava?
Ele virou a cara para o lado oposto, na esperança de que o cão não corresse para si.
“Que estúpidos aqueles dois. Não têm mesmo noção”. Baixou a cabeça, fechou os olhos e quando, dois minutos depois, a levantou, já a direcção da mesma era outra, a do mar. Manteve os olhos fechados. “Que estúpidos, não têm mesmo noção”. Mas sorriu. Sorriu, fez pressão novamente para enterrar os pés na areia fria e desejou-lhes sorte. “Sejam felizes e façam esses marotos felizes”.
Abriu os olhos. Já não olhou para ver se ainda se avistavam os 4. E ali ficou mais um tempo a olhar para o mar, para o céu já borrado de laranjas. Ali ficou a cantar para si o “Blower's Daughter”, até o o sol se esconder de vez.

4 comentários:

pedro f. jorge disse...

A praia precisa realmente dessa calma que a "ele" lhe falta para ser aprazível... a inactividade, para mim, longe de se tornar mãe de hábitos e horários reprováveis, provocou em mim uma regra e um rigor quase matemáticos: acordar ás 7.30, preparar-me, pegar no carro e fazer a meia hora de caminho até á praia... 8.30, 9.00, com o sol a colaborar, sítio para estacionar ao pé da praia, o livro e (sim, eu acho imprescindível) o iPod. Imprescindível tb foi carregar o dito com "blue for the most" de Abraham, uma nobre desaparecida de seu nome Rachel Cuming que editou esta pérola e desapareceu... Esta era a minha música de Verão, havia-a ouvido no ano anterior, quando ainda chegava tarde à praia e tinha de ir para a zona da lagoa, em que a areia era terra com pequenas conchas finas e partidas que faziam parecer a ida á praia uma espécie de ritual de iniciação de uma religião qualquer...
A orientação sui generis daquela praia fazia com que tivesse de ler de costas para o mar, sentado num monte de areia por mim erigido, para contrabalançar a pendente da praia. Mas o sol sabia bem era no peito e na careca...
Na altura em que me costumava ir embora, 11.30, 12.00, chegavam os retardatários para alimentar o cancro de pele, justo pagamento por uma bele rapidamente bronzeada... desses, um belo casal de exemplares humano, ele todo musculado, ela de formas perfeitas, juntos pelo desígnio divino do culto do corpo... bem oleado e bem exposto. O que eu gosto dos casais normais... o mundo é daquilo que é regra, não da excepção, e com "orgulho" exibia a minha barriga que anos de ginásio não conseguiram abater, a não ser que prescindisse do pecado da gula, dos poucos que me são permitidos... e para quê? Seria mais feliz de barriga lisa, mas estomago vazio... dificilmente. Do mesmo modo, sou mais feliz a esfregar a cabeça com força no banho do que a ter cuidados extremos para que os meus pobres folículos capilares não cedam sobre a massagem das minhas mãos... azar do caralho.
Por isso, cedo no bronzeado... que não me preocupa: no que cedo é naquele calor na pele que me deixa feliz... e tudo para que viva sem enxertos de pele. O casal de bonzões lá ficou, divirtam-se a olhar um para o outro, que para falar não deve haver muito. Amén.

Anónimo disse...

O teu texto fez-me pensar em muitas coisas.

Anónimo disse...

Até parece q visualizei a cena toda.

Anónimo disse...

Se estivesse na praia...