Tatuagens

Andava há anos para fazer uma, ou duas, ou três novas tatuagens. Sempre pensou nisso mas nunca as fez. Era preciso dinheiro e, apesar de ser algo para a vida, logo talvez assim não tão caro, a verdade é que era preciso dinheiro. Quanto custa algo que se terá para o sempre? Qual o preço de algo que estará connosco para sempre?
Mas era preciso dinheiro e sempre o aplicou noutras coisas. Coisas do dia-a-dia, necessidades que foram surgindo, vontades que foi tendo, férias, mobílias, coisas. Mas a vontade de tatuagens sempre a teve. Desde pequeno. No penúltimo ano da licenciatura foi fazer a primeira. Tinha 22 anos. Na altura, não tinha por hábito apontar datas de eventos, de acontecimentos, de coisas para si importantes. Hábito que adquiriu anos depois. A tatuagem era o importante, o acontecimento do dia. O dia em que ia fazer algo que sempre quis. O dia em si, a data, um número num calendário, que importância tinha? Na altura, nenhuma. Hoje, gostaria de saber o dia exacto, mas não sabia. Naquela altura ele queria era ter no corpo aquilo que havia desenhado logo à primeira numa folha de papel branca.
Era um dia de sol, um dia de Primavera. Uma ida a Lisboa com o seu irmão, uma ida para uma vinda diferente. Diferente, com um desenho tatuado em si. Um desenho que ele mesmo desenhou. Estava feliz na ida, mais feliz na vinda.
Voltou diferente, claro. O espelho do quarto, que reflectia a novidade na pele, não deixava qualquer espaço para dúvidas. Ali estava ela.
Tinha aquela, adorava-a e sabia que queria outra, ou mesmo outras. Aquela já fazia parte de si, do seu corpo, do seu ser. Era dele, era ele, tal como um braço, uma perna, o cabelo, as unhas. Era dele o desenho, era dele a tinta, era dele o desejo, era dele o sonho, aquilo que ela representava, mais do que aquilo que se via cravado na pele. Uma tatuagem é muito do que isso, sempre achou.
Hoje, mais de dez anos passados, continuava com essa vontade, a de fazer mais tatuagens. E tinha ideias, muitas ideias. Umas da sua cabeça, outras resultantes de pesquisa na Internet. Queria fazer mais uma, ou duas, ou três.
Uns dizem que é loucura, que não faz sentido, que é demais, que uma chega, que mais do que uma é exagero, quanto muito duas, vá lá, três, mas pequeninas. Ele não se importa com isso, com essas opiniões.
A que estava consigo há anos fazia divergir opiniões. Uns achavam-na linda. Outros pediam para mostrar e calavam-se quando a viam, talvez não gostassem mas não queriam dizer, afinal, é uma parte do corpo de alguém e que não se tira como se tira uma blusa. "É chato dizer-se que não se gosta". Sorriam, só isso. Nunca se incomodou com isso.
Quem não gostava dela, sempre fez questão de lhe dizer isso. Ele, fingia que não ligava, que não era uma opinião importante, no fundo, era apenas uma opinião. Mas ligava, ligava e entristecia-o ser quase massacrado com os comentários depreciativos cada vez que se falava em tatuagens, cada vez que a dita estava exposta. Palavras como “feia, horrível, nojenta, horrorosa” começaram a interiorizar-se aos poucos.
Pensou escondê-la, camuflá-la com outra tatuagem. Alguma que tapasse a que sempre o tinha acompanhado. De quando em vez, numa qualquer reunião de trabalho mais aborrecida, lá pegava numa caneta, num lápis e esboçava algo, algo para tapar a sua tatuagem. Esconder aquela coisa, afinal, tão feia. “Ia apagá-la” e contou-o aos que sabia dela não gostarem nem um pouco, a quem a odiava, constantemente depreciava. Mostraram-se contentes, claro. Ele também.
Outra, linda, ia colocar por cima daquela antiga, feia.
É certo que hoje não a faria, hoje não se dirigiria a uma casa especializada e dizendo: “Faça-me esta tatuagem!” Cresceu, mudou de gostos estéticos. Hoje, aquelas que quer fazer, nada têm a ver com aquela que o acompanha há anos. Pensou mesmo “anulá-la”. Queria algo coerente, algo lógico, algo estético no corpo. Não algo que “destoasse” das restantes, acima de tudo, dos seus gostos recentes.
Mas haverá algo mais lógico, mais coerente do que aquilo que somos? O percurso que percorremos? Haverá algo mais ilógico do que tapar em nós algo que fez parte de um passado, logo, de nós? Algo que já foi tão importante, que já o havia feito tão feliz, só porque agora, aos seus olhos, até lhe chegava a não parecer muito bonito? Ele não era assim, ele não conseguia fazer isso. Ele não conseguia anular assim o passado. Podia não ser a ideal, podia não ser representativa do que ele agora é, mas era representativa do seu caminho, do seu percurso, do seu crescimento e aprendizagem. Não há linha evolutiva se esta tiver cortes. Passam a ser traços ilógicos, soltos, num gráfico sem nome. Sim, tornou-se, até talvez, feia, mas dentro de si, para si, por aquilo que representava, era linda! E talvez nenhuma viesse a ter, algum dia, tamanho significado.
Era uma tatuagem, feia ou bonita, estética ou não, era uma tatuagem que sempre o acompanhou praticamente desde que deixou a adolescência, uma tatuagem que, por muito feia que agora possa ser, faz parte da sua vida, da sua escalada à montanha. Uma tatuagem que tem um valor, que marcou um período, que é uma peça na sua história de vida. E esse, é um valor muito maior do que a estética só por si. “Logo, fica!” pensou. Tocou-a com a mão direita e sorriu. “Não te vou tapar. Continuarás aqui e não serás tapada por outra. Há espaço para mais. Cada uma terá o seu lugar, o seu lugar em mim, naquilo que eu sou. E tu foste a primeira. Ficas e para sempre!”
Sentiu-se estúpido por estar a falar com uma tatuagem, como se esta fosse uma pessoa, um animal, quando nem um objecto era. Mas estava a falar com ele mesmo. A ideia de deixar de vê-la ali estava a causar-lhe uma dorzinha lá bem no fundo. Como que um apagar de uma companhia, o anular uma parte de si, um dizer “Adeus” a algo que era seu desde há tanto tempo. E isso, ele tinha muita dificuldade em fazer. Se não o conseguia fazer com as pessoas, também não o conseguia fazer com uma parte de si.
“Gostem, não gostem, adorem, odeiem, comentem, silenciem, concordem ou não…não consigo camuflar o passado, cobri-lo, ignorá-lo, enfeitá-lo com outras supostas realidades, não consigo dizer adeus”.

5 comentários:

Anónimo disse...

Faz, faz, faz as tatuagens que quiseres. Eu não sou fã mas entendo-te. Deixa lá aqueles que não gostam.
O teu post podia servir de introdução ao programa de tatuagens do people & arts. Adorei.

Anónimo disse...

Tu fazes-me pensar.

Anónimo disse...

E quando é que me mostras essa tatuagem?

Anónimo disse...

Não é facil dizer adeus aquilo que tivemos no passado mas também não é facil dizer adeus aquilo que gostariamos de ter e não temos.

Anónimo disse...

Quando algo está tatuado em nós, é muito difícil senão mesmo impossível que deixe de estar. Mesmo que optasses por tatuar outra por cima, ela estaria lá sempre mesmo que se faça de conta que não está, ainda por cima se o significado é tão grande.
O passado é por vezes tão importante que parece que é mais presente que o presente em si. E talvez seja o maior "presente" que temos.