Ferrari Vermelho

3.46h
Entram no carro. Batem com as portas. A roupa que vestem pouco ou nada tem a ver com o aspecto do automóvel já velho que ele comprou em 4ª mão. Mas era um sonho dele. Não era carro que comprasse hoje. Não gostava do modelo, da cor, nem sequer da marca. O emprego permitia-o a outros luxos. Ainda assim, comprou-o havia 2 anos. Sentia um enorme carinho por ele. Não o largava por nada, quer fosse para se deslocar para o trabalho, quer fosse para passear os cães ao fim-de-semana, fosse para onde fosse num raio de mais de 300 metros.
Comprou-o porque era o carro que mais o fascinava naquela colecção de cromos que quase completou quando tinha 8 anos. Dizia ao avô que tinha comprado um gelado mas, em vez disso, lá ia à papelaria da Dona Amélia adquirir mais uma carteirinha, na esperança de que o Ferrari Testarrossa vermelho lhe saltasse à vista assim que puxasse o conjunto de 3 cromos para fora, quase sempre ainda sem ter recebi o troco. Nunca saltou. E faltava esse para completar a caderneta. Caderneta essa que o Ruca, um dos 2 Fox Terrier, em pequeno tinha encontrado e devorado de fio a pavio. Nesse dia sentiu-se capaz de atirar o estupor do cão pela varanda. Chegar a casa e tudo mastigado e estraçalhado espalhado pelo chão de todas as divisões.
Este carro, onde agora já se deslocava com ela, era aquele para o qual, aos 8 anos, olhava uns minutos antes de apagar a luz da mesa de cabeceira. "Um dia vou um carro destes, exactamente igual a este". Queria um carro daqueles, pronto. E hoje, 19 anos passados, tinha.
- Não me interessa, a sério, não quero saber!
- Desculpa, eu é que não quero saber, 'tás parvo ou quê?
- Sim, já sei que sou parvo, whatever!
- Sim, és parvo, não és parvo mas, às vezes, és e muito. E hoje foste, fica a saber.
- Sim, já sei...sim, ok, fico a saber. E agora, que queres que eu faça?
- Nada, não faças nada, pra variar.
- "Pra variar" digo eu. É sempre a mesma coisa.
- ...
- Tens de ver que eu...
- Não, tou farta, a sério, tou farta. Não digas nada.
- Ok, não digo nada.
- Eu ali sentada o tempo todo e tu a ignorares-me completamente, achas normal? Porra, estamos juntos há anos mas isso não é motivo para eu deixar de existir, ou é? Às vezes pareces mesmo um miúdo estúpido, tens noção disso?
- Oh, por amor de Deus, que exagero. Tu é que não entraste na conversa.
- Conversa? Chamas aquilo conversa? Só disparates pegados. Só a dizerem mal dos colegas todos como se vocês fossem superiores a toda a gente. Tens noção das coisas que disseram? Da forma como se comportaram? Ia eu entrar naquilo? E estou para ver se a polícia nos manda parar, quero só ver o balão.
- Eu não estou com os copos!
- Não!? Ainda mais triste é. Fazeres aquela figura e não estares com os copos!? Só faltou roçares-te ainda mais na parva da Carolina.
- Roçar-me em quem? Oh, por amor de Deus! E que mal tinha se o fizesse? O que é que isso tem a ver connosco?
- Somos casados, só isso. Se achas que isso não é nada, então desculpa, não percebi. Já podias ter dito, não?
- Que exagero! És mesmo exagerada, tu. Que mal tem uns abracinhos e assim?
- Que mal tem?
O carro, de um amarelo acastanhado, cor que ela odiava, parava em todos os vermelhos. Pareciam que faziam de propósito em aparecer-lhes à frente só para demorarem tempo a chegar a casa. Estava desejosa por chegar, pegar nos cães e ir passeá-los. Sair de perto dele. Desaparecer. Queria estar sozinha... e nunca mais chegavam.
Fez-se silêncio. No rádio passava uma ópera de Strauss mas nas duas cabeças imperava o silêncio, um silêncio constrangedor.
Passaram 10 minutos. Minutos que pareceram intermináveis. O silêncio continuava e tornava-se cada vez mais claustrofóbico.
Ele olhava em frente com uma mão no volante e a outra na perna. Queria mostrar-se descontraído. A cada sinal vermelho olhava para os nomes iluminados das lojas, sem prestar atenção a nenhum, mas querendo mostrar-se muito interessado. Queria mostrar qualquer coisa. Ela, com o cotovelo apoiado na porta e a mão fechada a apoiar o queixo, nunca desviou o olhar da rua. Nada via. Só não queria olhar para ele.
O Ford voltou a arrancar. Depois da 1ª, da 2ª, da 3ª e finalmente da 4ª, aproveitando estar com a mão ali tão perto, pôs a mão na perna dela. Ela mal se mexeu. Apenas um rápido mas brusco impulso muscular que odiou por não ter conseguido controlar. Ele arrasto a sua mão até à dela, colocando a sua por cima.
- Olha a estrada, vê lá se nos matas aos dois. Olha, menos mau. Era um descanço, se calhar.
- Parva. És mesmo estúpida às vezes, tu também.
- Ai eu é que sou estúpida? Nem vou comentar isso. Depois de tudo, eu é que ainda sou estúpida. Pois, de facto, sou mesmo e muito. Estou farta!
- Dá-me a mão.
- Para quê? Fazes porcaria e depois queres que te dê a mão?
- Dá-me a mão.
- És sempre o mesmo com isso do dar-te a mão.
- Sabes porquê?
- Vá, diz lá: Porque queres ficar bem comigo, porque queres fazer as pazes, porque me amas e mais não sei quê. Já 'tou haituada ao discurso.
- Dá-me a mão.
- Irra, que é chato, este gajo!
- Sou. Dá-me a mão.
- Mas porquê, já agora. Tenho razão, não tenho. É por isso, não é?
- É. Não... É porque tenho tanto medo de te perder e quando penso nisso...
- Oh please!
- Quando agora falaste de me espetar com o carro, imaginei que morrias e amanhã acordava sem ti, sem estares mais na minha vida, a meu lado...
- E? Na volta até eras mais feliz, ora! Vias-te livre de mim. Assim, tu e a Carolinhinha já podiam ficar juntinhos, lindinhos da vida. Já viste a sorte que tinhas? Perdias era o teu lindo carro, todo espatifado. Isso sim, era importante.
- Pára... e... e quero dar-te a mão para sentir que estás aqui, para saberes que estou aqui, para que se amanhã morreres eu não me arrepender de não te ter dado a mão.
- Que coisa mais parva! Qual morrer, qual quê!? Pronto, toma lá a mão! Dizes coisas tão parvas. Isso não lembra a ninguém.
- Então porque é que é essa lagriminha no canto do olho?
- ...
- Diz lá, vá.
- Olha, porque estou farta deste carro velho que é um desconforto. Uma viagem mínima e sem importância e já me dói a coluna. Quem é que já usa k7's? Quero que compres um carro novo já que insistes tanto que juntos temos que andar nesta carroça e deixe sempre o meu na garagem.
- (Risos) És mesmo... Pronto, ok, eu compro um Ferrari vermelhão, por exemplo. Que tal? Queres mais piroso? Assim completo a colecção. (Risos)
- Qual colecção?
- Não sabes?
- Sei.
4.15h

5 comentários:

Anónimo disse...

A isto chamo amor. Com todas as suas agruras, aborrecimentos, dores, momentos de crise. Uma linha fina entre o ficar e o partir, o continuar e o desistir.

Quem me dera a mim viver momentos assim. Conheces alguém interessado? Eh eh eh

Anónimo disse...

De repente parece mesmo que entrei naquele carro e no banco de tras acompanhei aquela meia hora com aquele casal. Uma tensão foi o que senti.
A duvida se a discussão continuaria ou venceria o amor.
O amor vence tudo e sempre.

Anónimo disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Anónimo disse...

Nunca pensaste em escrever um livro? Pensa nisso.

Isto é muito bonito.

Anónimo disse...

Na, na, na, o amor n vence tudo. Estás enganado.

Nem sempre a realidade é esta aqui mostrada. Mas mm assim gostava de passar por isto outra vez. Nada é pior do q nao estarmos com quem nos ama. Mais cedo ou mais tarde percebemos isso e por vezes é tarde de mais. Aí sentimos que já não somos felizes, no fundo nao somos.