Não era, não é, nunca foi.

Estava irritado. Estava irritado com o Eurofestival da Canção e sentia-se estúpido por isso. Afinal, porque é que aquilo era assim tão importante? É um festival. Os países da Europa de Leste votam uns nos outros. É assim há anos. That´s all! Mas estava irritado. Talvez porque a música fosse algo tão importante para si. Das coisas mais importantes, sempre o disse. Com a música sorria, ria, chorava, arrepiava, cantava... a música fazia-o sentir-se livre, preso, sensual, sexual, altivo, construtivo, destrutivo. A música feria-o. A música fazia-o chegar às nuvens. A música fazia-o sentir. E sentir era o que ele mais queria na vida.
Em tempos, chegou a sentir que a música era o mais importante da sua vida. Não era, não é, nunca foi. O amor, esse sim, é aquilo que mais ama.
Saiu de casa. Desceu o prédio por um elevador com intenso cheiro a cão. Aquele cheiro que lhe chega a dar vómitos. Algum vizinho tinha ido passear o animal. No 3º andar entrou uma rapariga. Baixa, franzina, cabelo encaracolado solto, rosto pintado de forma exagerada (ia sair à noite, claro). Apeteceu-lhe perguntar: "Não acha incrível a posição em que ficou a canção alemã? Como é que a Hungara não ficou nas 3 primeiras?" Em vez disso sorriu, a rapariga fez o mesmo.
Lembrou-se da canção das raparigas russas. Pegou no ipod, seleccionou a dita cuja e, já a caminho do carro, sentia-se snob, altivo, estiloso como que a desfilar pela praceta. O ventinho na cara vinha mesmo a calhar. Sentiu-se no video perfeito para o momento.
Entrou no carro e, mal se sentou, uma mensagem no telemóvel. Leu, respondeu. Arrancou. Outra. Leu e voltou a responder. Queria transmitir calma ao outro lado, um certo desinteresse, até. Mas não era assim que se sentia. A mensagem corroeu-o por dentro. Um aperto rondou-lhe o estômago. Tentou desviar a sua atenção, desinteressar-se pelo escrito e por aquilo que já lhe estava a moer a cabeça. Era sábado. Era noite. A noite esperava por ele.
Voltou a activar a música russa, desta vez, no máximo. Sabia que conduzir com fones nos ouvidos era proíbido, mas o rádio do carro há muito que não funcionava, portanto, paciência.
Dirigiu-se à capital. Guardou o telemóvel na mala, com medo não sabia bem de quê. Acende um cigarro. Minutos depois pega no objecto e...uma chamada não atendida. O aperto agarrou no estômago, não lhe chegou a aproximação ao órgão. Agarrou-o mesmo.
Durante todo o caminho o ipod continuou a fazer aquilo para o qual foi criado. Música, música e música. Mas essa tinha passado para segundo plano. Já nem sabia muito bem o que estava a tocar. Era uma qualquer do Eurofestival. E outra. E outra. Era o telemóvel o objecto para o qual mais olhava, o objecto que mais importava ali. A luz emanada que, a qualquer momento, podia acender no carro escuro.
Estacionou no primeiro lugar que encontrou. Pegou no telemóvel para ligar a quem lhe havia ligado. No exacto momento o telemóvel começou a tocar. Olhou-o. Atendeu. A chamada caiu. Rede mínima, bateria também. Ligou ele. Barulhos, ruídos e nada. O aparelho desligou de vez. Não conseguiu voltar a ligá-lo.
"E agora?" pensou. Podia voltar a ouvir música. Mas não o fez. Na sua alma, o toque do telemóvel tinha-se sobreposto ao que, há muitos anos, achou ser o mais importante da sua vida, a música. Não era, não é, nunca foi.

2 comentários:

Anónimo disse...

Excelente na sua simplicidade. Parabéns.

Anónimo disse...

De facto a musica nao é o mais importante na vida, são as pessoas que amamos, acima de tudo essas.