Sábado de madrugada

Era sábado de madrugada. Sentia-se estranho. Sabia que algo se passava mas não queria pensar muito. Não queria descobrir o que era.
Levantou-se, dirigiu-se à cozinha para beber água. Não tinha sede mas beber água era a desculpa para sair da cama e decidir o que fazer a seguir. Ocupar-se, não pensar. Não tinha sono mas os olhos estavam como que enebriados por uma espécie de névoa que mais parecia miopia que ia e vinha, que saltava de olho para olho.
Levantou os estores e foi à varanda. O frio não o impediu de fumar um cigarro. O frio, que era tanto, não lhe toldou os pensamentos. Isso queria ele, mas não. Era apenas frio, um frio que serviu para que fumasse aquele cigarro o mais rapidamente possível.
Entrou pela porta da sala, sentou-se em frente ao computador e quis escrever. Ainda estava gelado. Dois minutos na varanda tinham chegado para lhe gelar a pele, a carne, os nervos, o sangue, os ossos, mas não o pensamento. Tinha tanto frio. Era da roupa, só podia. Afinal estava apenas de boxers, meias finas e t-shirt. Queria que nada gelasse, nada a não ser os pensamentos que o mantinham acordado. Esses sim poderiam congelar, mas esses, nele, nunca congelavam. Estavam, quase sempre, em ebulição.
Olhou para o ecrã do computador. O que iria fazer? E iria fazer alguma coisa? Talvez voltar para a cama. Queria escrever, precisava escrever, deixar sair palavras, palavras atrás de palavras, mesmo que sem nexo algum.
Estava com frio, ainda com muito frio, mas descalçou as meias. Colocou os pés descalços no chão gelado. Queria que o frio dos mosaicos lhe subisse pelas pernas ao ponto de se convencer de que era melhor ir-se deitar no quetinho e deixar-se adormecer. O imenso frio da varanda não chegou, o frio do chão também não. Despiu os boxers. Ficou apenas com a t-shirt.
Precisava escrever mas não sabia o quê. Tinha tantas, tantas coisas para escrever mas não conseguia escrever nada. E não era por causa da falta de sono, não era pelo frio da rua, não era pelo chão gelado nos pés, não era pelo corpo despido da cintura para baixo. Era por causa daquela t-shirt, convenceu-se disso. Tirou-a depressa. Fechou o computador e, de passo apressado, dirigiu-se para o quarto. Abriu o roupeiro e pegou noutra t-shirt. Agarrou-a entre as mãos, aproximou-a de si, do seu rosto, do seu nariz e cheirou-a. Mesmo antes de chegar ao roupeiro já sabia ao que ela cheirava. Conhecia tão bem aquele odor, tão bem. Mas quis senti-lo o mais possível e, por isso, ali ficou com aquele suposto mero pano junto ao nariz.
Vestiu-a e deitou-se. Naquela noite era a t-shirt que precisava para dormir. Abraçando-se a si mesmo, abraçou aquele pedaço de tecido com mangas. Inspirou profundamente e sentiu-se a aquecer lentamente.
Sábado de madrugada. Gente nos bares, nas discotecas, pelas ruas. Risos, cantos, danças, sexo. Ele ali abraçado a uma t-shirt que não via há meses e meses, que nem sabia já como ali tinha chegado.
Era ridículo. Mas ele não se sentia ridículo. Não conseguia escrever nada mas, pelo menos, naquela noite sentir-se-ia mais quente.
E na sua mente começaram a passar palavras escritas. "Está apaixonado, está fascinado, quer-te, pode até dar-te um prazer imenso, ser o que sempre quiseste, o artista dos sonhos que sempre sonhaste... mas ele nunca conhecerá os teus meandros como eu conheço, ele nunca verá os sorrisos que eu via, ele não notará cada marca particular dos tacos da casa, cada falha do rodapé, o cheiro de cada divisão, as marcas de ferrugem da máquina de lavar, o peso da porta de entrada, os bocadinhos de cola de cada interruptor, cada degrau escuro das escadas, cada lugar da rua."
Não sorriu, não chorou, apenas se abraçou mais um pouco, apertou o tecido da t-shirt e, sem frio, vislumbrou uma última frase que arriscou sussurrar. Sabia já não ser muito importante, sabia que ele não viria, sabia que ele não estava sozinho, que tinha alguém a aquecê-lo, sabia que ele agora era mais feliz, sabia que aquilo era apenas uma t-shirt, mas para si esse restício, um mero pano, era muito, pelo menos alguma coisa. "É sábado de madrugada. Sai daí. Vem ter comigo. Bate à porta."

8 comentários:

João Roque disse...

Quem fica sem saber o que escrever (e não é por estar gelado) sou eu, quando quero comentar um texto como este; tu, de vez em quando surpreendes-me tanto e de uma forma tão positiva, amigo...
Um forte abraço e aconchega-te bem a essa t-shirt!

Anónimo disse...

Tal como o pinguim fico sem saber o que escrever perante este texto tão bonito e profundo, mas ao contrário dele tu não me surpreendes pela tua escrita. És talvez a pessoa mais criativa e talentosa que eu conheço a vários níveis e não digas que estou a exagerar. Há muita gente com muito talento aqui ou ali mas poucas pessoas têm talento para fazer bem várias coisas, em várias áreas, que tu consegues fazer bem.
Sempre achei que era um desperdício estares neste sistema de ensino porque tens talento para tanto mais.
Já me disseste que ensinar pode ser uma arte, mas hoje em dia sabes tão bem como eu que já não é e por isso continuo a dizer que no ensino és um desperdício, já para não falar do facto de seres gay, um desperdício. lolololololol Bem aqui estou a brincar mas lembrei-me da cara da minha amiga Carla que ficou com a boca de lado quando te viu e disso que é um desperdício seres gay.
Mesmo que ainda aches o ensino uma arte, continua a dedicar-te às outras artes onde também és muito bom. Falta-me ouvir-te cantar. Para quando oh envergonhado? lolololololol
Não quero parecer exagerada mas tenho o maior orgulho em conhecer alguém como tu que tem como maior talento, acima de tudo, ser o ser humano maravilhoso que é.
Adoro-te e tenho muitas saudades tuas.

Mr.X disse...

nao perca essa t-shirt e nunca deixe de se abraçar a si mesmo

Mr. X

Unknown disse...

I'm speechless.
With a single tear in mi eye.
Thanks

Anónimo disse...

Um post de cortar a respiração.
Já não sei se foi melhor ter aturado gente desinteressante como aturei no sabado à noite oiu se preferia abraçar-me a uma tshirt.
Acho que ainda assim preferi a primeira opção e olha que foi mau.

Contrariamente ao Mr.X acho que há tshits que devem ser logo deitadas fora, logo. N será o caso dessa?

peter_pina disse...

tenho a impressao k devias ir devolver a t-shirt com um abraços dakeles....bem apertados....! k é assim k as t-shirts se devolvem! vestem-se na pessoa e abraçam-se! para se ter a certeza k fikou bem entregue!

abraço, pp

Anónimo disse...

ui ui ui q lindo, q triste, já estou a chorar....e a bocejar.Vai mas é dormir e cala-te com conversa da treta.

Anónimo disse...

Qual é o interesse que este anónimo tem nos comentários infelizes que escreve? Falta de massa cerebral ou prazer em ser do contra e deitar abaixo de forma desagradável só pode ser.
Já no blog da ana aparece um, talvez o mesmo, com comentários deste género. Não se entende.