Esferográfica



13.40h. Estrada do recinto escolar. Ela, sempre muito corada, meio a correr, interceptou o professor que se dirigia para o interior do estabelecimento.
M - Stôooor... Stô-ôr...
P - Oh rapariga, agora não posso, está quase a tocar. Não tem aula a seguir?
M - Stôr, espere. Tenho, tenho mas ainda não tocou.
P - Mas está quase. Vá, falamos depois, pode ser?
M - Stôr, desculpe, eu sei... é que... bem, queria dar-lhe uma coisa...
P - O quê? Justificação de alguma falta? Ontem faltou ao primeiro tempo.
M - Sim, eu sei. Não, não é isso... Tenho uma prenda para si.
P - Uma prenda? A propósito de quê?
M - Fiz-lhe esta caneta no fim-de-semana... por causa do que me tem ajudado...
P - Eu?
M - Sim, na sexta... foi muito bom falar outra vez consigo... e quis-lhe agradecer. Obrigado por tudo, stôr.
P - Sim, mas aquilo foi uma noite sem exemplo, você não pode chegar a casa tão tarde, não tem idade para isso e os seus pais podem não gostar.
M - Oh stôr, eu disse-lhe que podia falar com a minha mãe ao telefone, ela sabe que eu fiquei a falar consigo e não se importa.
P - Sim, eu sei mas não é suposto a menina sair da escola às 9 e 30, já era de noite.
M - Pois, e o stôr mora longe, eu sei... desculpe.
P - Não tem nada que pedir desculpas mas depois não quero os seus pais a reclamar.
M - Oh... eles? Eles querem lá saber de mim. Mas gosta da caneta? A corda com cores... fui eu que escolhi, fui comprar e fiz. e esta parte aqui dá para porta-chaves, vê? Gosta?
P - Sim, gosto, muito obrigado M. Está muito gira. (Ele não gostava nada, mas há alturas em que não se pode deixar de mentir).
Ela sorriu, corou e baixou os olhos.
M - Ainda bem.
P - Mas não era preciso, rapariga. Sou vosso director de turma, já sabem que podem falar comigo. Também é para isso que servimos.
M - Mas é diferente, o stôr ouve-nos, ouve os nossos problemas, as cenas... e eu ando muito...
P - Sim, eu sei, M. E as coisas estão melhores?
M - Mais ou menos. Eu agora ignoro-os.
P- Boa. Força com essa auto-estima!
M - O stôr devia era ser meu pai.
P- Sou assim tão velho, rapariga? (riu-se)
M - É um bocadinho cota, é. (riu-se) Senão até me casava consigo daqui a uns anos. Mas sou feia e gorda... e tenho este cabelo com este problema... e eles não entendem e estão sempre...
P - Pronto, pronto... já sabemos isso. E o champoo tem resultado?
M - Sim, já estou melhor. Mas ainda tenho aqui um bocado de alergia, não se vê?
P - Quase nada, rapariga.
M - O stôr salvou-me.
P - Oh, pronto, o exagero típico da vossa idade. Que coisa! Não salvei nada, deixe-se lá de dramas e exageros. A vida continua, bola para a frente. O champoo foi barato. Foi só ir à farmácia, não me custou nada. Está melhor é o que interessa.
M - Não é isso... O stôr salvou-me.
Timidamente, mas com uma força incrível, abraçou-se a ele, ali no recinto escolar, despertando a curiosidade de muitos que ali estavam.
P - Pronto, então M, vá lá.
M - Desculpe... O stôr salvou-me. Naquele dia, a seguir às aulas... eu... eu ia matar-me (sussurrou).
P - O quê? Por causa do cabelo, rapariga? Que exagero!
M - E porque sou feia e gorda e tenho sempre a cara vermelha deste problema meu e visto roupas que eles gozam e não tenho amigos... estou muito sozinha... e os meus pais...
P - Sim, eu sei. Mas já falámos no que se pode fazer, nas formas de mudar isso, não falámos? Está mais animada é o que interessa.
M - Sim... Não diga a ninguém, por favor, a ninguém. A minha mãe e o meu pai não podem saber. E a turma também não, senão ainda me gozam mais.
P - Mas está a falar a sério?
M - Sim, já não aguentava mais, eu disse-lhe.
P - Sim, mas...
M - Ia matar-me mesmo. Ia mandar uma mensagem à minha mãe de depois ia pós comboios.
P - Oh rapariga...
M - Mas já tou bem, o stôr salvou-me.
P - Pronto, um exagero mas então ainda bem.
M - Oh stôr... pronto, o stõr nunca vai perceber mas salvou-me mesmo e, por isso, fiz-lhe esta caneta. Gostou mesmo?
P - Sim M, muito.
M - E vai usá-la?
P - Não. Depois começa a estragar-se. Vou colocá-la numa gaveta.
M - Ah, ainda bem, fixe.
P - Pronto, gosto de vê-la mais animada. Assim é que é. Vá, já tocou. Vamos lá para a aula. E obrigado, M.
M - De nada, eu queria dar-lhe uma cena mais cara e melhor mas não tinha dinheiro, já sabe... a caneta é daquelas de plástico, eu é que enfeitei...
P - Sim, eu sei. O que conta é a intenção. Gostei muito.
M - Desculpe ser tão chata e ter abraçado o stôr, desculpe stôr.
Ela sorriu tímida, envergonhada e afastou-se.
P- E já sabe, quando precisar de conversar... mas nos intervalos... isso de ficar horas e horas não tem jeito nenhum, ok?
M - Ok, stôr, ok.
P- Ah... e não é uma caneta, é uma esferográfica, M.
Ela correu, atabalhoada, para a porta de entrada dos alunos, puxando a blusa para disfarçar o corpo de que tem tanta vergonha. Ele ficou ali parado, com a caneta, pendurada não mão, sem saber o que pensar.
D - Olá L, tás bom? Pensativo, hã? Tá tudo bem?
P - Sim, tudo.
D - Já te arreliaste com algum miúdo, não? Eles andam impossíveis e nós é que temos de aturá-los.
P - ...
D - Já ficaste com a caneta de um, não? Os pais gastam dinheiro com eles, oferecem tudo aos meninos e eles não gostam de nada e deitam tudo para o chão. Estes miúdos já não dão valor a nada.
P - É uma esferográfica.

9 comentários:

Felisberto disse...

por isso tem a profissão mais bela do mundo...marca, ensina, forma e sem saber..ajuda muito:-)
mtos parabéns pelo bom professor!

Anónimo disse...

Chega a ser assustadora esta situação. Fica-se a pensar se naquela noite não tivesses ficado a falar com a aluna, e tinhas todo o direito de não ter ficado, não te podias nunca culpar por isso. Deste as tuas aulas e seria natural ires para casa, ainda por cima numa sexta-feira, fim de semana à porta. E nessa conversa conseguiste algo que podia parecer simples mas que foi decisiva, tens essa noção não tens?
Quem te garante mesmo que não salvaste a aluna? Os miudos cometem loucuras de momento e nunca se sabe o que poderia acontecer. Quantos adolescentes não terminam com as suas vidas, aparentemente sem motivo?
És capaz mesmo de ter a certeza de que ela estava a exagerar?

Não nos pagam para sermos psicólogos mas por vezes somos, não nos pagam para sermos assistentes sociais mas por vezes somos, não nos pagam para substituir os pais mas por vezes substituímos...

Tenho a certeza que isto se passou contigo, conheço-te na escola, reclamas, reclamas mas depois estás lá sempre que qualquer aluno precise, mais do que aluno, sempre que algum adolescente ou jovem, quem for, precise. Sempre te conheci assim. Brincas com eles, gostas de ser do contra, tratá-los mal mas eles não são parvos e percebem que gostas e te preocupas muito com eles, sabem que contigo podem contar.
Tens um jeito muito especial para eles, e isso não se aprende em nenhum estágio, em nenhuma aula assistida e não se avalia com papelada. É-te inato, natural e fazes mtas vezes sem dares por isso. Se há um dom para ajudar os miúdos a minimizar os seus problemas, tu tens esse dom, acredita.
Nesta escola deixaste tantas saudades entre os professores, os funcionários e os alunos que ainda hoje perguntam por ti e falam de ti. Qualquer professor de Geografia que cá chegue é logo comparado a ti pelos alunos que falam de ti com imenso carinho e saudade. Pena não vires cá mais, vê lá se consegues, mas sei que o trabalho é muito e que te entristece rever o que aqui viveste. Mas vem, por favor.
As pessoas em geral, os colegas, podem não nos dar valor, mas se os alunos derem isso é o mais importante. E tu sabes que eles te dão muito. Serves de modelo para muitos deles, sempre te disse isso. Não que concordem ou não contigo, que queiram ou não ser como tu, mas querem falar contigo, desabafar, falar deles, ouvir-te e acredita que te ouvem e muito e que tu ios ajudas e muito.

É por estas e por outras, porque sempre tive atenção às tuas atitudes no local de trabalho que te admiro muito e te adoro.

Um grande beijinho, meu querido.

Anónimo disse...

É caso para dizer: Fogo!!!!!!!

Valeu bem teres começado mais tarde o fim de semana, de certeza.

E para ela é certamente a esferográfica mais valiosa do mundo. Guarda-a bem, acredito que sim.

Aequillibrium disse...

a ultima palavra diz tudo... pela forma como foi dita.

Esferográfica.

:)

Anónimo disse...

Bem, que situação complicada ... muito complicada. Dá para perceber o quão problemática estará a cabeça dessa rapariga e o caos em que psicologicamente se encontra.

O texto cansa e dá para imaginar a aluna a falar quase compulsivamente, repetindo desculpas, repetindo gratidão ... quase culpabilizando-se de n coisas ... uma necessidade urgente de aceitação, afirmação e de um reforço sistemático de uma auto-estima que está abaixo do chão. Mas essa situação e esse desespero será cada vez mais comum entre os jovens. A competição é mais que muita nos dias de hoje, o impacto e o peso da imagem e da estética é, para eles, cheios de valores distorcidos e muito questionáveis, a prioridade máxima de afirmação junto dos colegas. É o reflexo imediato da sociedade de que já falámos várias vezes, da superficialidade, do mediatismo, da imagem ... do reduzido conteúdo. As crianças estão muito fragilizadas neste aspecto, são muito vulneráveis (se até os adultos são), não têm os mecanismos de defesa e carecem de capacidade de observação crítica sobre este modelo social que está instituído ... são as revistas cor-de-rosa, as novelas, o consumismo, a moda, os padrões estéticos ... tudo vazio, tudo fugaz e tudo de facto desinteressante ... mas para eles não, é fundamental.

Como também o próprio estudo é cada vez mais secundário ... os jovens já não têm conversas interessantes sobre tema algum, não discutem ou debatem sobre isto ou aquilo ... o que é que sobra em todo este processo? a imagem, as roupas, a moda, as marcas, o telemóvel, a net, e pouco mais ...

É a sociedade para a qual estamos de facto a contribuir todos, com uma quota parte ...e o próprio Estado, estupidificando as pessoas ... e o modelo económico vigente ... os frutos, esses, já começaram a ser colhidos e parecem-me muito amargos.

Essa aluna deveria ser encaminhada para o psicólogo escolar e os pais advertidos, antes de ela cometer alguma loucura.

Anónimo disse...

Adorei o comentário da fátima, ela tem verdadeira percepção da tua personalidade.

Essa conversa e o tempo que disponibilizaste ( e tanto que eu já disponibilizei também com cenas destas e que, nunca ninguém me pagou nem reconheceu ... e também não sou psicólogo), é o que verdadeiramente importa nesta profissão, teve muito mais valor do que 20 planificações, 10 actividades de animação e entretenimento para agradar aos titulares que vão avaliar ou 200 papéis que temos que preencher nas escolas, apenas porque sim.

Esse é o verdadeiro sentido daquilo que andamos aqui a fazer e pelo menos serviu para algo útil, ainda que a essa criança lhe dê uma travadinha daqui a uns dias. Naquele momento foi útil.

Já mereces muito bom ou excelente, ainda que não tivesses entregue objectivos individuais ou pedido aulas assistidas.

Tens noção que muitos professores não se disponibilizariam para "perder" esse precioso tempo ... nomeadamente muitos titulares de último escalão que até vão ser avaliadores.

Unknown disse...

Eu também tive um professor que me salvou.
Obrigado, a ele e a si.

CarlaRamalho disse...

:))

Ainda bem que há pessoas como tu: disponíveis e sensíveis!!

Beijinhos!

Tiger! disse...

Uau, fiquei sem palavras...
Realmente, os professores ajudam. Infelizmente só já no meu 11º ano é que encontrei a melhor professora que já tive, uma grande amiga.

Um abraço.