As letras que a inundavam

Abriu os olhos que tinha fechados. Fechados mas como se tivessem estado abertos mesmo durante o pouco tempo que dormiu. Ela estava ali a seu lado. Dormia profundamente, tão profundamente como três horas antes quando ele entrou no quarto fazendo o menor barulho possível. Era tão bonita. Tantos anos depois ainda a achava tão bonita. E aquele cheiro, aquele cheiro só dela. Um cheiro que só ele conhecia. Um cheiro que não se descobre no outro com abraços, cumprimentos mesmo de anos. Agora olhava para ela mas desde que tinha chegado, às 5 da manhã, despido a roupa atirada para o chão e tendo-se deitado de olhos fechados, nunca tinha deixado de a olhar mesmo de olhos cerrados e virado para o lado oposto ao que ela ocupava há anos naquela cama. Na sua cabeça estava a vê-la ali e cada vez que ela se mexia para mudar de posição ele via-a mentalmente e adivinhava-lhe a expressão terna.
Sentia uma dor a apertar-lhe o peito. Não chorou. Não queria acordá-la. Mas já não devia faltar muito para ela abrir os olhos, abraçá-lo e dizer-lhe o “bom-dia” de sempre.
Ali estava ela. Ali estava ele. Três horas depois de ali se ter deitado. Horas depois do sucedido.
Os amigos eram os certos, o bar era o certo, a bebida tomada várias vezes era a certa, aquelas raparigas eram as certas e aquela, especificamente aquela alta, loura, de olhos grandes e ousados, era a certa. Tudo certo e certeiro para acontecer o que aconteceu.
Depois dos risos, das piadas, dos copos, de umas trocas de olhares, de umas insinuações verbais e físicas certeiras, deu consigo na cama daquela rapariga jovem que parecia ter surgido naquele bar para ele, só para ele, para o tentar. E ele foi tentado. Ele cedeu. Ele quis. Ele deixou. Ele foi com ela. E ele teve sexo com ela. E foi bom, foi muito bom. E ele gostou, gostou muito.
E agora estava ali, novamente ali. Ali deitado ao lado da mulher com quem escolheu casar, ter filhos, criar uma família. A mulher que dali a minutos iria acordar, abraçá-lo e perguntar como havia sido o jantar e os copos com o pessoal do trabalho.
Iria perdoá-lo? Iriam voltar a ser o que eram? Como olharia ela para ele quando ele lhe dissesse? Como iria olhá-lo a partir dali?
E ele? Iria perdoar-se? Como é que olhava para si mesmo agora? Como é que iria olhar para ela? Para eles?
Nunca tinha acontecido mas ele sentia que ela iria perdoá-lo, conhecia-a demasiadamente bem. Sabia. Pelo menos tinha de acreditar nisso e queria tanto acreditar nisso.
Ela iria entender. A rapariga era nova, oferecida, ele estava bem bebido, os amigos estimularam a que acontecesse, criou-se o ambiente e ele deixou-se ir. Estava bêbado mas consciente para usar preservativo. A própria rapariga quis, mesmo garantindo que estava limpa, que não fazia aquilo habitualmente, ela própria quis. Foram cuidadosos e na altura da penetração ele protegeu-se. Era preciso muito azar.
Pronto, foi uma coisa de uma noite. Ele é homem, tem as suas necessidades, a carne é fraca e há muitos anos que não conhecia corpo que não o dela. Ela iria entender. Ela também tinha as suas necessidades. Ela também saía com as amigas e já havia chegado tarde a casa. Ele sabia lá o que também já podia ter acontecido.
A sua cabeça não parava. Eram perguntas atrás de perguntas, hipóteses atrás de hipóteses... e ela ali a dormir a seu lado. Os seus movimentos, cada vez mais frequentes, deixavam perceber que estava prestes a acordar, prestes a virar-se para si e a abraçá-lo.
Desejou tanto que ela entendesse, que o perdoasse, que não chorasse, que sofresse só um bocadinho, que o beijasse com aquele amor que só ela sabia dar, que tudo aquilo passasse. Desejou até que ela lhe confessasse que também já o havia feito.
Imaginou-se, dali a dias, quando as coisas acalmassem, a fazer amor com ela. Imaginou-se a cobri-la de beijos pelo corpo, ela a fazer o mesmo a si. Imaginou-se excitado com os lábios dela a tocar o seu pénis erecto. Imaginou-se a penetrá-la e o prazer que isso lhes dava.
Caiu-lhe uma lágrima, seguida de outra e mais outra. De repente quase deixou de conseguir respirar tal era o “nó” que lhe sufocava a garganta. Teve de conter um soluço e não deixar passá-lo por aquele “nó”. A sua cabeça criou um cenário aterrador. De repente viu o seu pénis a libertar um líquido branco cheio de três letras. Vários “h”, vários “i” e vários “v” enquanto ela ali tinha os seus lábios. De repente viu-se a libertar o seu fluido dentro da mulher que amava, um fluido cheio dessas mesmas três letras que dele saíam e que a inundavam. Um fluido que por ela se ia espalhando e contaminando todo o seu interior. De repente viu-se a fazer amor com ela e a matá-la. De repente olhou para o seu rosto e viu-a morta. Aquela noite tinha morto o seu amor. Ele tinha morto alguém e esse alguém era a pessoa que amava.
Sentiu um braço por cima do seu peito e ouviu da forma sussurrada que tão bem conhecia: “Bom dia! Então como foi a noite com o pessoal? Divertira-se? A que horas chegaste? Nem dei por nada.”
Ela estava ali, estava viva. Tinha sido um pesadelo de segundos. Ela estava viva e ali a seu lado como ele sempre quis que fosse e para sempre. E agora mais do que nunca o queria.
Ela estava ali abraçada a ele, como sempre o fazia quando não tinham de sair à pressa para o emprego. Ela estava ali abraçada a ele mas não sabia que estava abraçada a um criminoso. E era assim que ele se sentia. Não um marido que traiu a mulher, porque a outra rapariga pouco ou nada significou para ele. Não um marido que traiu a mulher que ama, porque nunca a deixou de amar no pouco tempo que o seu corpo esteve com o da a rapariga loura. Não um traidor, mas um criminoso.
“Então...estás a dormir? Não dizes nada? Como foi a noite? Não me digas que vieste a conduzir bêbado?”
Beijo-a na cabeça a cheirar aquele shampô que ele tão bem conhecia e apertou-a contra si com toda a força que, naquele momento, ainda conseguiu ter.

6 comentários:

Anónimo disse...

A vida é assim, comete-se um erro e esse mesmo pode-nos custar a própria vida. É a vida contra nós mesmos.
Este texto deveria ser uma lição de vida para muita gente mas infelizmente as pessoas preferem passar ao lado e achar que acontece é aos outros, que uma só vez não tem problema mas tem e pode ser um problema muito pesado.
Até entendo este homem, a carne é fraca, mas não me consegue transmitir pena nenhuma, nenhuma porque ao fazer o que fez pôs em risco a vida de uma pessoa e acima de tudo da pessoa que ama. Errou mas esse erro pode-lhe sair caro, mas acima de tudo caro à sua mulher.
É bom que ele se lembre sempre das letras quando estiver a ter sexo com a sua mulher, que se lembre que pode estar a matá-la.
Posso estar a ser cruel mas penso assim.

Anónimo disse...

Há muito tempo que não lia um texto que mexesse tanto comigo.
Notável. Parabéns.

TheTalesMaker disse...

Estou a ver que a inspiração está a voltar rapaz. Gostei muito do texto. Parabéns!

Hydrargirum disse...

Ai credo...

Realmente passei por várias nuances de sentimento ao ler este texto...
Até fiquei...meio down agora:/

Anónimo disse...

Imagina a quantidade de pessoas que já passaram por estes mesmíssimos pensamentos e tortura interior, desgastando-as psicologicamente e condenando a vida de casal. Será mesmo que a infedilidade se justifica e a carne é suficientemente fraca que compensem um desgaste psicológico destes e uma censura, recriminação e arrependimento desta magnitude, que os acompanha possivelmente a vida inteira, como uma sombra???

Anónimo disse...

Uma tortura pela qual muitos já passaram e passam. Os que não passam por essa tortura é porque preferem não pensar, preferem pensar que só acontece aos outros. E é por essas e por outras que se anda por aí a contaminar pessoas de forma inconsequente e propositadamente inconsciente.

Um texto devastador mas que merece palmas.