Casa de Campo (parte 2)

Apagou o cigarro na água da banheira onde estava estendido e saíu da mesma. Vestiu um fato de treino e foi-se deitar.
Sentia-se mais só na sua cama da casa da cidade do que naquela cama onde ela nunca havia estado. Ali, isolado de tudo e todos, a dor era menor. Era ele e o Manel.
Abriu os olhos. "Ting...ting...ting..." Que barulhinho estranho era aquele? Chuva? Naquela altura do ano? Certamente tinha deixado uma torneira a pingar. Ou então era aquele tecto velho que deixava passar água. Devia ter a sala já molhada mas estava demasiado cansado para se levantar.
Fechou os olhos. "Ting...ting...ting...ting..." Seria um ladrão? Teria entrado alguém em casa? Era assim nos filmes de terror. Não, não podia ser, claro. O Manel dava por tudo, dava sempre sinal quando ouvia algum som estranho. O que ele tinha ladrado no sábado passado por causa de um ratito que se esgueirou para trás de um dos armários da cozinha.
Esticou o braço para sentir o Manel ali deitado no chão ao lado da cama e logo recebeu umas lambidelas na mão.
"Ting...ting...", novamente aquele barulhinho. E vinha da sala, disso já tinha a certeza. Eram gotas, umas atrás de outras, a cairem do tecto, só podia.
Naquele momento, ali no escuro mais profundo, chegou a desejar que fosse alguém, algum espírito que ali estivesse para o levar consigo, para o fazer sair da vida que nem sentia como tal. Mas que levasse também o Manel. Os dois, só os dois, mas noutra realidade, noutra dimensão.
Mas não era um ladrão, um psicopata, uma alma penada, um espírito, nada disso. Até um espírito não enganava o Manel. Ali, naquela casa de campo, não entrava nada além de uma mera brisa. O Manel não deixava.
Sorriu com aquela ideia e voltou a esticar o braço. Novamente o seu Golden Retriver deu sinal de vida e lambeu-lhe a mão umas quantas vezes seguidas.
"Ting...ting..." Que irritação. Tinha de ir ver o que era aquilo. Tinha perdido o sono e o barulhinho, na sua cabeça, já era uma barulheira irritante.
Levantou-se e dirigiu-se para a sala.
No chão estava uma mancha imensa de líquido escuro. Não era água. Apesar da pouca luz das velas, não era água de certeza. Era um líquido vermelho. Era sangue. "Ting...ting..." Olhou para cima e viu o Manel, o seu companheiro, morto e pendurado no candeeiro de tecto velho.
Num milésimo de segundo lançou as mãos à boca, fechou os olhos e virou-se de costas para aquele cenário. Perdeu as forças por completo e caiu de joelhos no chão. Não conseguia respirar. Sentia-se a sufocar. Abriu os olhos e na parede velha, cheia de humidade, viu escrito com sangue: "People can lick too".

9 comentários:

Kapitão Kaus disse...

Oh pá, devias publicar isto!
Tens veia para escrever um thriller! O texto tem um desfecho arrepiante e está construído para apelar ao leitor.

Parabéns pelo texto!

Abraço:)

João Roque disse...

Muito bom, mas muito triste.
Abraço.

Hydrargirum disse...

Ai que horror....:((((

eu já conhecia esta história, ou mito urbano...mas era com um cão tb, mas debaixo da cama...

Nevertheless, arrepia-me sempre:(

Anónimo disse...

Que final horrível, horrível horrível!

Mas adorei ler. Muito intenso e apelativo.

Excelente.

Anónimo disse...

Tal como o Hydrargirum eu já conhecia uma história algo parecida mas algo longe de ser assim, apenas algumas semelhanças.
Esta está contada de uma forma arrepiante e ao mesmo tempo triste. A relação do homem com o passado marcante, com o seu cão, o que o levou a comprar a casa.
Quando li o primeiro texto não estava nada à espera de tal desfecho.
Muito bom.

F disse...

Parabéns pelo texto, está realmente fabuloso. Diria que este texto consegue transbordar os sentimentos , da solidão , da tristeza, enquanto nos agarra e compele a continuar a ler! Mas o fim arrepiou-me :s ! Podes continuar ...

TheTalesMaker disse...

Gostei muita da história, não a conhecia. O final é deveras perturbador.
Mas acima de tudo, acho que esta história tem aqui muitas mensagens subliminares, não?
:/

Unknown disse...

Conseguiste-me prender do princípio ao fim, gostei! E o final.. bem muito bom. Voltarei mais vezes.

Anónimo disse...

Esta cena é arrepiante ... está bem escrita e com a cadência certa. Precisava talvez de mais tempo até ao desenlace ... parece-me que chegaste demasiadamente rápido ao fim.