Ali, duas almas. Obrigaram a sentar os corpos descalços que as transportam. Sentaram os corpos a cerca de um metro um do outro. Um, de propósito, ligeiramente mais atrás. A alma desse fê-lo falar, falar e falar como se estivesse para dizer aquilo há tanto tempo. Como se não se cansasse de falar daquilo. Como se aquilo lhe estivesse preso há dias e dias. A outra alma usou-se do outro corpo para falar menos. Ouviu. Queria ouvir. Além dos ouvidos, usou a boca. Uma boca que, várias vezes, sorriu como reflexo de um carinho imenso nutrido por quem, com tanto entusiasmo falava.
Os pés, enterrados na areia molhada, foram brincando, ao ponto de torná-la lisa. A alma do corpo que estava mais à frente, usou-se, para além dos pés, da mão esquerda que, a seu comando, desenhou algo na areia alisada pela extremidades inferiores. Desenhou uma circunferência. Depois duas linhas rectas paralelas a passar no centro da mesmo. Não sabe porque o desenhou, mas desenhou. Afinal, é difícil estar-se na areia da praia e não esventrá-la com desenhos. Os olhos viram duas meias luas. Um quarto minguante e um quarto crescente, ali, lado a lado. Desenhou, talvez para não movimentar o corpo no sentido que mais queria.
Continuaram as almas a usar-se das cordas vocais dos dois corpos para falar.
Já de dia, talvez mais de uma hora depois, a alma do corpo que estava sentado mais atrás fê-lo levanta-se. O céu estava coberto de nuvens que se fundiam acinzentadas no mar calmo. Uma chuva ténue, muito ténue deixou-se adivinhar. Caíram alguns chuviscos. Um aqui, outro ali. O corpo levantado, enquanto falava, desenhou. Desenhou uma circunferência. Depois duas linhas rectas paralelas a passar no centro da mesmo. Teria esta alma utilizado os olhos do corpo mais atrás para ver o desenho que a mão esquerda do corpo mais à frente havia desenhado, mais de uma hora antes, quando o céu e o mar eram da mesma cor, negro da noite em vez de cinza do agora dia? Parecia que não.
Porque é que desenhaste isso?
Não sei. Andei à volta, fiz uma bola e depois dois riscos com os pés.
A alma do corpo ainda sentado mais à frente fez com que os lábios esboçassem um sorriso. Não tinham tido o mesmo sonho, como anos antes, mas tinham feito o mesmo desenho. Preferiu silenciar e desviar o olhar para as gaivotas que, ao que parece, não existem em todos os mares.
Os corpos já estavam ambos de pé e as duas almas colocaram-nos a caminhar.
O caminho de regresso, com os corpos lado a lado, nos mesmos lados que tinham ocupado na areia, foi bem mais silencioso. Pouco foi dito. As almas não pararam de funcionar, contudo. E agora?
Agora estavam prestes a despedir-se. E assim o fizeram. Mais de quatro meses depois, ali estavam lado a lado, como, durante quatro anos, tantas e tantas vezes estiveram. Ali, tão, mas tão perto.
Tinham dificuldade em cruzar olhares. Os corpos, esses, não se tocaram. Não houve um abraço e nem as extremidades se tocaram. Talvez fosse melhor assim. Se se tocassem era provável que mais do que as almas se embrenhassem uma na outra. Estas almas que, sem saberem, desenharam, cada uma, uma circunferência com duas linhas rectas paralelas a passar no centro da mesmo. Duas meias luas.
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6 comentários:
A tua criatividade é extraordinária. Adorei este texto.
Seria muito belo uma sintonia assim entre 2 pessoas.
Eu acredito nestas coisas mágicas pq n acredito em coincidencias.
Às vezes é preciso o silêncio e não são precisas palavras.
O problema é qdo o corpo não obedece à alma.
Que lindo!!!!!
Não percebi porque não estou em condições disso (depois explico), se este episódio foi real ou criado pelo teu imaginário ... a situação pode ser perfeitamente real ... a tristeza é imensa e invade-me ... não consigo dizer mais nada ...
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