Fique.

Num virar de esquina que faço quase de olhos fechados, aproximei-me de carro. O que era aquilo? Não estava a acreditar no que via a uns 100 metros, abaixo daquela rampa. Será que estava a ver bem? Umas várias dezenas de miúdos, que rapidamente reconheci, à entrada da escola. Seria o que eu estava a pensar? Teriam mesmo eles tido a coragem? Comecei a tremer com o coração ao saltos. Seria mesmo? Nem queria olhar. Estacionei. Inspirei fundo, abri a porta e saí do carro enquanto o ar me saía dos pulmões de forma descompassada tal era o nervosismo.
As pernas tremiam mas lá fui. Tinha de ser. Desci a rampa e a umas dezenas de metros lá estavam.
– Stôooooor!
– Eh, stor... a gente não disse que ia fazer isto?
E gritavam uns, chamavam outros, riam uns, pulavam outros. Por ali estavam uns quantos colegas professores no canto dos fumadores habitual, outros professores que não fumam, dois ou três funcionários e uns quantos alunos curiosos que não os meus. Os funcionários sorriam divertidos, uma estava visivelmente emocionada pela atitude dos miúdos. Os colegas segredavam, sorriam e olhavam para ver a minha reacção. Qual reacção? O coração acelerava, as pernas pareciam de elástico, as mãos acompanhavam-nas no mesmo. Já rodeado de uns quantos, não conseguia dizer nada a não ser “vocês são loucos! Eu não acredito!”
Uns tocavam-me, outros tentavam abraçar, uns fotografavam, uns riam e outros gritavam eufóricos. Todos esperavam que eu reagisse. Eu estava estático.
– Stôr, veja o que fizemos.
- Gosta dos cartazes?
- Vá veja lá.
- Eu a a Mafalda fizemos este, gosta?
– Aquele ali que o Rodrigo tem foi ele e o Nuno, ah e o Rui, que fizeram.
– Vá stôrzinho, fique cá, não se vá embora.
– Stôr, fique, por favor, fique.
– Fique, fique, fique – gritavam cada vez mais alunos.
– Zé, Estás a ver o que eles fizeram? Eu já lhes expliquei que não depende de ti mas eles já foram entregar um abaixo assinado ao conselho executivo e tudo. Sabias?
– Eu já lhes tinha dito isso, eles entenderam que não depende de mim... Não acredito!
– Stôr, fique lá, agente gosta tanto de si.
- Fique!
Eu estava atónito. Havia miúdos com lágrimas nos olhos, duas alunas choravam abraçadas a outras duas de outra turma. Riam, saltavam, gritavam, uma confusão.
– Vá, vamos lá, já chega... que recepção esta. Estas criaturas são malucas! Que exagero, vá... vá lá. Olhem que vergonha que vocês me fazem passar!
– Oh Zé, eles adoram-te e quiseram fazer isto...
- É stôr, é, é, ouviu a stôra.
- E o stôr diz que não, mas adora-nos e vai ter saudades nossas.
– Vai, não vai? Diga que sim.
- Vai ter saudades minhas, não vai? De eu chateá-lo sempre nas aulas e de me chamar criaturinha...
– Claro que não vou. Vocês são péssimos, umas alminhas péssimas, uns chatos de primeira. Vai ser um alivio na sexta ver-me livre de vocês. Dois anos a aturar estes chatos!
– Ehhhh, o stôr ‘tá sempre a gozar. O stôr adora agente, não quer é dizer.
– Trata-nos mal mas agente adora!
- Stôr dê-me um beijinho, mas não é de despedida, não se vá embora.
- Olhe, fale com a ministra, diga a ela para o deixar ficar cá, não pode?
- Olhe, fiz-lhe uma prenda.
– Eu também.
– E vamos fazer um jantar da nossa turma e o stôr vai. Vão todos os stores do 8ºD e o stor tem que ir.
– Stôr, vou dançar consigo, vou, vou!
– Pronto, estragou tudo. Agora é que me deu um motivo para não ir. Dançar? No way! Eu detesto música, só barulho organizado, e detesto dançar.
– Vai dançar, vai. Agente obriga, né pessoal? A Catarina obriga-o!
- Oh Rute, anda tirar uma foto com o stôr!
- Fiz-lhe uma dedicatória, mas é só para o stôr ler, mais ninguém.
– Stôr, dê-me o seu número!
– Oh stôr, a sério, fique lá na escola pró ano. Não se vá embora.
– E na sexta-feira, na última aula do ano, o 8ºA vai-lhe fazer uma surpresa, sabia?
– Cala-te, parva, já estás a estragar tudo, não era para o stôr saber.
- Surpresa? Eu detesto surpresas, já vos disse. Qual surpresa, qual quê!
– Vai, vai... Vão, não vão, Berta?
– O stôr vai ver, vai ser ao último tempo.
– Stôr, podemos ir lá à sala ter consigo nessa hora?
– Não vão nada, somos só nós, a surpresa é da nossa turma. O stôr não é vosso DT, é nosso.
– Stôr, diga lá se não gosta dos cartazes que fizemos? Aquele da Débora, da Nádia e do João Pedro é o mais giro, não é?
– É tão giro, já leu?
– Leu?
– Vá, venha ver o nosso, a Carolina colou um pau bué grande e tudo para ficar mais alto.
– Fique, fique, fique... Gritavam novamente.
Atordoado, nervoso, olhava para eles, olhava para os meus colegas, para os funcionários e só pensava “Vou mesmo ter muitas saudades de várias destas pessoas, desta escola. Vou mesmo ter muitas saudades destes miúdos que acompanho há dois anos. Não acredito que eles fizeram mesmo isto!” A custo, engoli em seco. “Não acredito que me vou embora!”
– Stôr, vai chorar?
– Eu? Poupe-me, menina! Claro que não. Eu não choro!
– Oh stôr, claro que chora. Toda a gente chora. Eu quando vi o seu carro chegar já chorei. E olhe, o Bruno quase chorou que o Miguel bem viu, e é rapaz, veja lá.
- Vá, chega! Vamos para dentro. Que é lá isto, meninos menores de idade fora da escola. Vá, tudo para dentro!
– Oh, o porteiro deixou e a stôra de Francês disse que não fazia mal.
– O stôr ‘tá é a disfarçar para não chorar.
– Vá stôr, então vá, ria. Agente ri sempre tanto consigo.
- Lá 'tá o stôr. Vá, não faça essa cara de mau que não nos engana.
- Stôr, quer ficar com os cartazes que agente fez? Assim lembra-se de nós.
- Sim claro, e vou decorar as paredes da minha casa com todos, claro.
- Oh stôr guarde em algum lado. Quer que agente ajude?
– Mas gostou, não gostou?
– 'Tava à espera, 'tava?
– Vá stôr, agente vai consigo até à sala de professores.
– Yaaaa, bora lá todos com o stôoooor.
- Stôra, venha também.
– Stôr, agora a sério, fique cá para o ano, fique. Agente fez isto para si. Fique.

8 comentários:

fátima disse...

Meu querido, não me espanta nada disto, nada.
Fiquei emocionada e enternecida mas não me espanta nada a recepção que te fizeram.
Conheço-te, sei o tipo de relação que tens com os alunos, sei o quanto eles te adoram porque tens um toque especial para os cativar, para os ajudar, para os ouvir. E isso é mais importante que tudo. Com a tua ironia e brincadeiras, com a tua capacidade de os ouvir, de lhes dar atenção e conselhos eles ligam-se a ti de uma maneira, sempre achei isso e tu sabes bem. Não me espanta mesmo nada esta atitude deles. E quando se tem os alunos mais do que um ano seguido há laços que se criam ainda mais fortes.
Na escola de Alhandra ainda hoje falam de ti, perguntam por ti, querem que cá venhas e tudo com muito carinho e saudade. Tu marcaste muito muitos alunos da escola e mesmo os que cá já não estão, quando cá vêm visitar perguntam logo por ti.
Além de óptimo professor, és uma pessoa que toca os miúdos como ser humano e os miúdos são muito sensíveis a isso. Vêem-te como um modelo a seguir e acredita que não fazem isso com todos os professores, eles sabem separar o trigo do joio nessas coisas.
Sei que também tenho uma muito boa relação com os alunos e que deixo saudades, mas não os consigo tocar da mesma forma como tu consegues, tens qualquer coisa de especial e não é só para eles, sempre te disse isso. Tu tens uma energia qualquer que atrai pessoas e lhes faz bem ter-te presente. Já sei que achas que estou a exagerar, mas é verdade.
Gostava tanto que voltasses para Alhandra mas ao ler isto também gostava que continuasses na escola onde estás onde vejo que continuas a ser o professor que eras e onde continuas a ser ídolo de muitos miúdos, muitos que precisam das referências de alguém como tu. Mas isso o ministério não vê, isso não lhe interessa.
Nota-se uma alegria nos alunos por te fazerem esta surpresa, porque te adoram, para verem a tua reacção, mas ao mesmo tempo uma tristeza porque sentem que estás de partida e já sentem saudades. É pena, muita pena não poderes ficar aí.
Quem sabe ainda vens parar à Alhandra?! Adorava, adorava.
Mas não fiques triste, pensa que ja deixaste um marco em pelo menos duas escolas e que noutra escola cativarás mais alunos, ajudarás mais adolescentes e jovens, serás um marco positivo para tantos mais e que isso é das melhores coisas da vida. Deixarás saudades verdadeiras e isso, hoje em dia, não é assim tão fácil.
São estas coisas que ainda me fazem sentir que a nossa profissão ainda vale a pena e é das mais importantes do mundo.
Passaste por estes, deixaste o teu marco, outros virão.
Um grande, grande beijinho. Adoro-te.

João Roque disse...


desculpa o nome, mas ele está lá no texto; só quem nunca deu aulas (e eu dei muitas) poderá, eventualmente, não se comover com "isto" e ficar mesmo com uma lágrima ao canto do olho. Ser professor é desgastante, não compensador, nos dias de hoje com problemas acrescidos, sim é tudo isso, mas chegar ao fim do ano e ter uma "manifestação" com cartazes à nossa espera, afinal compensa tudo.
Do que de ti conheço, apenas te digo que se fosse um puto de uma escola, gostaria muito de te ter como professor; e apetece-me juntar-me a eles e gritar com eles: "Stôr, fique, por favor!!!"
Abraço bem cá de dentro.

Individual(mente) disse...

Não sou nem nunca fui professor mas recordo algumas confissões de final de ano a alguns professores que, a nós enquanto alunos, nos eram mais próximos. Hoje em dia, por partilhar uma área comum a algum deles, ainda mantenho contacto.
Ficaste embevecido com a atitude deles, certo?
Abraço

Aequillibrium disse...

ooohhhhhhhhh



:_)

Angelo disse...

Eu já me ando a preparar mentalmente para a choradeira que vai ser. Pelo menos numa das minhas escolas!

Com isto, não sabes ainda onde é que vais parar. certo?

Hydrargirum disse...

Uau...ate eu fiquei embevecido:) Afinal vale a pena dar de nos a alguns alunos:)

Muitos parabens por seres uma pessoa Querida:)

paulo disse...

é de ficar sem palavras! e contra o gesto, fazer o quê? esperar e valha-te a sorte!

abraço

Rui disse...

Stor, stor, stor!

Tu és tão querido e emblemático, como seria possível que os alunos não te adorassem?