Despedidas (ou egocentrismo puro)

- Então stôr, não diz nada?
- O quê? Que foi?
- Então não vê? Estamos todos vestidos de preto.
Ali estava a explicação pela qual ele, naquele último dia de aulas, no último tempo lectivo, com a sua direcção de turma de há 2 anos, ao chegar à porta da sala de aula achou que alguma coisa estranha se passava, mas não percebia o quê. Em segundos, depois da primeira troca de palavras, percebeu.
- Então, estão de luto? Vão a algum funeral?
- Não, claro que não estamos de luto. Viemos assim porque é a sua cor preferida. Veio a turma toda assim, já viu? (risos)
- Sim stôr, estamos de luto.
- Então, estão de luto ou não?
- Sim, de luto porque o stôr se vai embora e não o vamos ter mais a ralhar connosco e a mandar vir e a explicar as cenas.
- Não acredito nisto, agora todos de preto. Odeio preto! Vá, vamos lá entrar.
- Não odeio nada, agente sabe.
Sentou-se na secretária. Eles nas suas mesas. Olhavam para ele. Olhavam uns para os outros. Ele não levantava a cabeça demorando uns 10 minutos a escrever um sumário de uma frase.
Olhou-os de relance sem saber bem para qual deles olhar.
- Então, hoje é sexta-feira, último tempo, vésperas de fim-de-semana. Não é suposto a salganhada do costume? Todos divertidinhos, agitados, com risotas parvas sem quererem saber o que é que aqui o chato está a dizer? O que é que se passa? Ai!
Continuavam em silêncio, olhavam-no e entreolhavam-se de soslaio, mostrando um ou outro sorriso embaraçado.
- Então, vá lá meninos. É o último tempo do último dia de aulas. Estão quase, quase de férias. Deviam-me era ter trazido um belo bolo por vos ter aturado 2 anos, uns sumos e coisas que vocês gostam para fazermos uma festa.
- Stôr, festa? isso não é original. A Nídia e o Apolo queriam mas o resto não quis.
- Ya, não queremos festa nenhuma! Posso sair? O stôr marca falta? Posso?
- Então, que se passa miúdo? Que irritação é essa? Mas sim ok, pode. Não, não marco falta hoje. Pode ir.
- Ricardo, senta-te! Então vais-te embora para quê? Senta-te.
- Não quero ficar aqui... não... não gosto de despedidas. Stôr, desculpe lá, vou-me embora, posso, não posso? Deixe-me lá sair. Stôr, até para o ano, vou sair.
- Oh estúpido, não sabes que o stôr não deve cá ficar paras o ano.
- É que eu não gosto disto, desta cena... isto é bué... stôr, bom fim-de-semana, boas férias e até Setembro. Fica cá para o ano, sim. Não percebo porque é que eles quiseram fazer esta cena se o stôr vai ficar connosco.
- Ok meninos, não vamos deixar o Ricardo sair sozinho. Vá, vamos todos. Já conversámos na aula passada. Já disse mal de vocês todos, um por um, seus insuportáveis desgraçadas. (risos) Hoje era mesmo para assinar o livro de ponto, despedirmo-nos e pronto. Vá, vamos lá todos embora. Não há cá despedidas, adeus e coisas assim. O Ricardo tem razão. Vocês são novos, vá vão lá para fora mais cedo aproveitar que ainda está sol.
Levantaram-se. Dirigiram-se à terceira mesa junto à janela. tiraram uma algo de um saco e, como se uma bandeja se tratasse, dirigiram-se à secretária do professor. Aqueles 4 ou 5 segundos pareceram uma procissão. Todos à volta da aluna que caminhava segurando, de forma quase solene, o objecto. Um caminhar, de segundos, alegre e, ao mesmo tempo, triste. Um cenário tão estranho, aquelas duas dezenas de miúdos vestidos de preto.
- Stôr, isto é nosso. Fizemos para si.
- ...
- ...
- Está a ver, tem a assinatura de todos.
- O desenho é uma linha, percebeu?
- Vá, leia alto o que a gente escreveu ao lado do desenho.
Rodeado dos alunos, leu baixo, só para si. Eles acompanharam tudo com o olhar. O Ricardo ficou em pé, muito vermelho, sozinho ao fundo, junto à porta da sala. Olhava para os pés que batiam um no outro como se uma bola de futebol estive a driblar.


(Quem quiser contribuir para o meu egocentrismo pode clicar para ler o texto)

4 comentários:

fátima disse...

O desenho está giro mas são as palavras que mais tocam.
Mas a mim o que mais me tocou além do desenho, do texto e dos alunos terem todos combinado ir vestidos de igual, foi mesmo a reacção do aluno Ricardo que queria sair porque, parece-me, não queria assistir ao que ele sabia que se ia passar, não queria despedir-se de ti. E isso diz mais do que representas para ele(s) do que mil palavras.

Um beijinho grande.

João Roque disse...

É tão bom ser professor, não é?

Daniel C.da Silva disse...

isto nao te mexe com o coraçao mais do que com o ego?

estou emocionado...

Rui disse...

Egocentrismo? Tu mereces com toda a certeza essa atitude dos teus alunos.

Abraço