Intrigava-o aquilo. Já era a segunda vez que conseguia, por porta entreaberta, perceber que era rosa, a casa da vizinha estava a ser pintada de rosa. Primeiro percebeu que o hall estava todo rosa, dias depois conseguiu perceber que a sala também de rosa tinha pintadas as paredes. Ok, é uma mulher ainda jovem, bonita, atraente e as todas as mulheres gostam de rosa, sobretudo aquelas muito femininas, como ela lhe parecia. Gostava de cor-de-rosa, pensou. Mas intrigava-o. Tanto rosa.
Quando se cruzaram nas escadas, a vizinha tinha uma ou outra mancha rosa na t-shirt de alças branca, nas calças de fato de treino cinzentas. Era uma mulher sexy, sem dúvida. Uns peitos altivos, sem sutien, mamilos bem nítidos, por baixo da t-shirt. Era intrigante, excitante, inquietante. Andava a pintar e andava a pintar, pelo menos, desde o fim-de-semana. Já era quinta-feira e a vizinha andava ainda a pintar. Certamente não ia trabalhar, ouvia barulho de cadeiras a arrastar, de móveis a arrastar a qualquer hora que chegasse ou saísse de casa. Ela estava a pintar a casa. Mas porquê tanto rosa, pensava. Um exagero. As mulheres são exageradas. Mas aquilo era mesmo um exagero.
- Anda nas pinturas... arriscou um dia quando meteu a sua chave à porta e a vizinha saía com a roupa cada vez mais suja de rosa, de dois ou três tons de rosa até. Estava suada, o que a tornava ainda mais sensual.
- Sim, mas tenho de ir comprar mais tinta. Esta não chega.
- Precisa de ajuda?
- Não obrigada, tenho de fazer isto sozinha, só eu.
- Mas é uma trabalheira... e a casa nem é muito pequena. É a casa toda? Vai ser toda?
- Sim, toda. Dá trabalho mas tem de ser. Antes de me ir embora.
- Mas vai-se embora?
- Sim, vou deixar esta casa e vou para outra.
Ela vai-se embora, que pena, pensou ele. Vai-se embora e anda a pintar a casa? Estranho.
- Olhe, eu ando meio desocupado, se quiser ajuda não me importo nada. Até gosto de pintar... e tenho muitas horas livres.
Ela sorriu com ar maroto.
- Não, deixe ‘tar. Eu cá me arranjo. Obrigado, de qualquer forma.
Intrigava-o aquilo. Agora mais do que nunca.
- Boa tarde. Desculpe estar a incomodá-la mas ia aqui a entrar em casa e ouvi um roçar na sua porta. Está tudo bem? Desculpe incomodá-la.
- Sim, tudo bem. Estou a pintar a porta da rua por dentro. Deixe-me abrir melhor. Desculpe lá.
Estava agora mais do que intrigado. Completamente boquiberto. O hall, a sala, o corredor, o pouco que via do quarto, tudo pintado de rosa, tudo. Paredes, tectos, cada móvel que conseguia ver, cada almofada, cada vela, os candeeiros, os bibelots, tudo aquilo que a vista alcançava. Tudo pintado de cor-de-rosa, desde o mais escuro ao mais claro, passado pelos tons mais chocantes.
- Sim, eu sei que é estranho, mas tem de ser - sorriu ela, com certa condescendência, percebendo a indignação esperada do vizinho.
- Tem? Bem, só falta o chão – brincou.
- Ah, isso é no fim. Fica para último. Está quase.
- Bem... estou... gosta mesmo de cor-de-rosa! – continuava ele incrédulo.
- Eu??? Odeio. – Soltou um ligeiro riso.
- Odeia??? Então mas... está tudo cor-de-rosa, tudo mesmo, não é?
- Sim, é esse o objectivo. Ainda não sei bem se pinte o interior dos móveis. Isto cansa.
Até as tomadas estão rosa, pensou ele.
- Mas odeia mesmo ou está a gozar?
- Odeio. É a cor que mais odeio. Não suporto mesmo. Rosa e amarelo. Gosto das outras todas, sobretudo de azul e roxo. Mas desta cor horrível... odeio, acho mesmo um nojo! E agora então ainda mais. Ando nisto há duas semanas.
- Não percebo.
- Deixe lá, eu sou maluca. Estou maluca, melhor dizendo. É o que toda a gente pensará, mas eu cá sei. Cada um com a sua mania, não é?
- Desculpe, é que é estranho pintar todas as divisões da mesma cor, ainda por cima uma cor tão forte. E está tudo, tudo mesmo pintado, não são só as paredes, pois não?
- Não, então não vê que não? Está horrível, não está?
- Bem... fica um bocadinho cansativo.
- Um bocadinho? Isto é de loucos. Quase que dá vómitos. Nem imagina quanto. Já não suporto, dá-me tanto raiva.
- Mas então não entendo, desculpe.
- O objectivo é esse mesmo. É uma estratégia, sabe?
- ...
- Sabe, às vezes gostamos tanto, mas tanto, de uma coisa na nossa vida que temos de pintá-la das piores cores possíveis para deixarmos de sofrer. É simples. É o que eu estou a fazer. Estou a torná-la feia, horrível, percebe? Dá trabalho, muito trabalho, custa, custa muito, mas tem de ser. Só assim consigo deixar esta casa. Só assim. Lembro-me dela assim horrível e pronto, o antes fica camuflado. Está lá por baixo, mas esta cor horrível tapa tudo. É mais fácil assim. Pinta-se para esquecer o que se gostava tanto. Percebe? Não? Deixe lá.
- Mas está lá. A sua casa, como gostava dela, está lá. É a mesma casa. Está aqui, aqui por baixo da tinta, com as cores que tinha antes. Vai deixar de tê-la, vai deixar de vê-la, mas ela está aqui. E por baixo desta cor... No fundo sabe que ela não é assim como está a pintá-la agora, como quer vê-la agora.
- Sim, sim... por isso vou dar mais demãos por cima.
- ...
- Vá, não se preocupe. Isto ainda demora e vou tentar não fazer muito barulho. É o arrastar as coisas, sabe?
- Não, não é isso. Não faz muito barulho.
- Mas já faltou mais, mais uns dias e isto fica. Feio. É assim que tenho de recordar.
- Tem a certeza?
- Os loucos não têm a certeza de nada, nem os outros quanto mais.
- Não a acho louca – estava a ser sincero. Ela parecia-lhe tão normal e... tão apetecível.
- Acha, acha, claro que acha – riu-se - Mas não faz mal. Estou quase de partida.
- Não vá – arriscou.
- Não? Então? Vou, vou. Tem de ser. É pintar isto tudo e sair daqui. Só assim consigo.
- Tem a certeza? Não acha que a casa, como ela era e a viveu, essa sim lhe ficará na memoria? E isso não tem de ser mau. É sinal de que teve uma casa que linda da qual gostava, isso é bom. Vai-se embora mas teve-a e foi feliz aqui, isso é bom. Porquê pintar tudo para lhe parecer feio.
- Olhe, deu-me uma ideia.
- Dei?
- Sim, quer dizer, lembrei-me agora. Vou partir umas coisas aqui – riu-se.
- Partir? Mas... mobílias???
- Sim, é melhor ainda. Recordar algo feio, horrível e cheio de defeitos. Perfeito! Vá, com licença... e desculpe o barulho.
- Mas não está a entender, o que eu quero dizer é que...
- Estou, estou, muito bem até. Mas cada um arranja-se como pode. Vá, não me ponha coisas na cabeça, homem - riu-se.
Intrigava-o aquilo. Intrigava-o tudo aquilo. Intrigava-o ainda mais ter vislumbrado, enquanto a porta se fechava, que aquele rosto, o rosto daquela mulher tão atraente, pensando que ele já não a via, num segundo, deixou de sorrir. Os lábios cerraram, os olhos pesaram e a porta fechou. Por segundos, ele percebeu, ela deixou de sorrir.