13 anos no Século XXI



- Posso entrar, stôr?
- Sim. Então o que é que aconteceu? Tu nunca chegas tarde. Adormeceste, não? Ai, ai, ai.
Mas percebeu, assim que aquela porta se abriu, que não era isso. Era grave, certamente grave. O Tiago nunca chegava tarde, nunca. Era mesmo dos primeiros a entrar e a sentar-se, abrindo logo o caderno para escrever o sumário. Os outros, enquanto entravam, falavam, perguntavam se podiam mudar de lugar, deitavam pastilhas fora, acabavam uma ou outra sms nos telemóveis, riam, metiam-se uns com os outros, mas o Tiago deixava essas coisas lá fora. O tipico aluno que encara uma aula como aula logo desde que o professor entra na sala.
- Vá, então senta-te lá. Então a mochila? Ficou no cacifo?
Percebeu, mesmo antes de perguntar, que não. A mochila não estava no cacifo. Algo se passava e era grave. Os olhos do Tiago, o ar meio atarantado, mostravam isso.
- Não tenho aqui, stôr. A mala... é que ficou em casa... e vim e... não tenho.
- Pronto, deixa lá. No final da aula falamos. Não te preocupes. Quem é que empresta uma folha e uma caneta ao Tiago?
Imediatamente vários colegas de turma se aprontaram a emprestar-lhe todo o material de que precisasse. Até alguns rapazes que não se davam muito com o Tiago. Todos perceberam que algo se passava. O Tiago nunca tinha aquele tipo de comportamento e estava com um ar tristíssimo, perdido, desesperado.
- Tiago, queres ir lá fora um bocadinho?
- Não stôr, não é preciso.
- Eu não marco falta, vai lá, rapaz.
- Não é preciso, a sério.
- Eu vou com ele, stôr.
- Não é preciso. Eu estou bem. Pode continuar, stôr.
A aula decorreu como habitualmente naquela turma agitada. Como habitualmente mas sem a participação do Tiago que colocava, constantemente, o dedo no ar, para raiva de alguns colegas, sobretudo rapazes que o achavam muito "certinho", muito "marrão", muito "amigo das raparigas". O Tiago estava ausente, disso não havia dúvidas.
Quando o toque soou deu-se a algazarra do costume. Cadeiras a arrastar, alunos a levantarem-se e a saírem da sala à pressa. Mais de uma hora depois já se tinham esquecido do Tiago. Interessava era ir a correr para o bar, ver as sms dos telemóveis, ir ter com este e aquele, a amiga e a outra.
- Tiago.
- Sim, stôr!?
- Vem aqui só um bocadinho.
- Stôr... tenho de ir ao bar... desculpe ter chegado atrasado. A mochila eu...
- Esquece isso, homem. Uma vez não é norma, ora essa! Tiago, não me quero meter e nem tens de falar mas... bem, passa-se alguma coisa chata, não passa?
Tiago fica imóvel junto à porta, baixa a cabeça e, alguns segundos depois, dirige-se ao professor que, na sua secretária, arrumava as coisas.
- Sim.
- E queres falar ou nem por isso.
As lágrimas começam a cair dos olhos daquele miúdo de 13 anos.
- Eu não dormi.
- Então? Algum problema em casa?
- Sou eu. O meu pai bateu-me.
- E porquê? Fizeste alguma coisa que não devias?
- Não fiz, acho que não fiz. Sou eu o problema.
- Então?
- O problema em casa sou eu.
- Mas porque dizes isso?
- Eu... eu contei à minha mãe uma coisa.
- Queres dizer o quê?
- Contei que... acho que... acho que gosto de rapazes, de um rapaz... e o meu pai descobriu.
- E bateu-te?
- Sim, ele não entende, mas nem eu entendo porque sou assim. Ele não tem culpa... e a minha mãe também não. E agora diz que me vai bater todos os dias até eu aprender. E também bateu na minha mãe.
- Porquê?
- Porque diz que a culpa é dela, mas não é, stôr.
- Culpa dela? Como assim?
- Porque ela deixa-me ajudá-la em casa. E uma vez pus um avental e outra vez... vesti uma bata dela.
- E o teu pai acha que isso é coisa de meninas, é isso não é?
- E não é pois não, stôr?
- Claro que não.
- Mas os rapazes não usam batas, só os gays.
- Achas isso? E tu achas que és...
- Gay?
- Sim.
- Agora já não vou ser.
- E achas que isso é assim, Tiago?
- Sim, tem de ser. Assim o meu pai não me bate, não bate à minha mãe e eu já não chego mais atrasado às aulas.
- Tiago, as coisas não são assim. Temos de conversar... olha...
- Deixe stôr, não é preciso. Eu vou ser normal, eu consigo.
- Espera, não te vás embora assim, rapaz.
- É isso, pode crer. Rapaz... eu sou um rapaz, não sou gay, sou rapaz. Stôr, vou ao bar... olhe, não conte nada a ninguém, tá bem? Eu já não chego tarde à sua aula, prometo.

17 comentários:

Anónimo disse...

A situação foi criada por ti ou é real???

Caso seja a primeira opção, é mais uma situação bem imaginada e interessante e que poderia perfeitamente acontecer.

Se é real ... creio que é pelo título ... é lamentável e algo terás de fazer, nem que seja no final do ano, dizer ao Director de Turma, ou convocares o pai (se fores tu o Director de Turma), ou quanto muito expores a situação ao Conselho Executivo. Independentemente das razões implicadas que já mereciam uma carga de porrada ao paizinho, avaliando o caso de forma neutra, existe violência doméstica. Alguém terá de pelo menos de denunciá-la.

Acho que nem vale a pena perder mais tempo sobre a falta de validade do motivo apresentado.

Existiu agressão gratuita à mãe e ao filho e o pai necessita quanto muito de acompanhamento psicológico.

disse...

Fiquei comovido com a tua narrativa. Se ao menos houvesse maneira de fazer ver a este Tiago que a vida é dele e que a deve viver em plenitude e ser honesto com ele próprio. Como seria bom transportá-lo na máquina do tempo para que pudesse ver a frustração e sofrimento por que um ser reprimido pode passar. Dói pensar que ainda há tantos Tiagos. Um abraço.

Anónimo disse...

Eu tenho uma mto boa relação com os alunos, sei disso, mas tu sempre tiveste um jeitinho mto especial, confesso a alguma inveja.
Sei que não vais abandonar este miúdo e q o vais ajudar, correcto?
É uma situação mto complicada mas tu vais ajudar, sei disso.

Anónimo disse...

É incrível como podem acontecer ainda coisas desta ignorância em pleno seculo XXI.
E a cabeça deste miúdo está tão baralhada, achar q o problema é dele e não do pai.
é por estas e por outras que muitos são infelizes, sofrem e até acabam por se suicidar.
Ajuda-o se puderes.

Anónimo disse...

Aconteceu numa aula tua? Eu n saberia como agir sinceramente.

João Roque disse...

Neste momento da vida do Tiago, tu serás possìvelmente a única pessoa que pode ajudar o rapaz.
Já fui professor e sei que apesar de se poder e dever manter um ambiente aberto e são com os alunos, se deve manter simultâneamente um certo distanciamento, para que não haja abusos e uma demasiada proximidade que leve a pensar em favoritismos; mas eu sou carneiro retinto e acho que acabava por encontrar uma ocasião em que, privadamente lhe explicasse que eu também era gay...
Mas reconheço que não é uma situação fácil, e há muitos Tiagos por aí...
Abraço reforçado.

CarlaRamalho disse...

Que tristeza... afinal os dados do estudo sobre a sexualidade dos portugueses, em que mais de 60% das pessoas dizem condenar as relações homossexuais entre dois homens, não estão assim tão afastados da realidade... É uma pena que continue a acontecer!

Frankenstakion disse...

Estou no expresso a caminho de Lx e deixaste-me a chorar. Cheio de vontade de ajudar o rapaz e de ter um "one on one" com o traste do pai. Quando é que o resto da humanidade desce das árvores?!?!
Beijos

Luís Galego disse...

Realidade ou ficção o que é certo é que estamos face a uma realidade muito preocupante e que continua a coarctar os direitos mais íntimos das pessoas, que por via disso se sentem muito vulneráveis. A sensação que tenho é que ainda temos que evoluir muito para que se possa aceitar as orientações dos outros como algo natural…se fosse professor e perante essa situação não sei o que faria, mas tenho a certeza que tu saberás, basta ver a sensibilidade com que encaraste o caso, a ser real; a ser ficção, não deixa de ser igualmente autêntico, passe a contradição, em virtude de ser algo muito provável de acontecer a cada instante. Bom Post.

Moi disse...

A verdade dói. O amor também.
E foste o primeiro a chegar... acho que vão haver seguimentos. Estamos contigo (mesmo que não fôssemos gay).
Abraço

Anónimo disse...

É uma história tão lamentavelmente triste que não consigo ter palavras para dizer mais que isto...

Will disse...

Diz-nos que isso é um epsiódio fictício...

Special K disse...

Que triste isto ainda se passar no século XXI. Quantos mais Tiagos haverá por aí?
Um abraço

TUSB disse...

Eu todos os dias me espanto com as atitudes de grande parte dos portugueses, baixa, repugnante... esse senhor merece ir para a cadeia, temos os dever de reportar todos esses tipos de situações que podem criar depressões graves e até levar ao suicidio como acontece a tantos adolescentes...

Anónimo disse...

Isto é real? Não posso acreditar.

Aequillibrium disse...

Infelizmente, não me custa acreditar que seja real...

:_(

Felisberto disse...

O mundo que existe lá fora...foi há poucos anos, quando tive os meus treze. Lembro-me perfeitamente como me foi dificil, como era assustador...não sabia muito bem o que era o sexo, o que era isso de ser homossexual. Sempre me interessara mais pelos hieróglifos, pelas grandes civilizações desaparecidas, pela música dos Excesso...enfim. Como a puberdade e a adolescência é dificil...as pessoas esquecem-se. A atitude do Tiago foi a normal, tadinho, ele tem 13 aninhos, deve estar cheio de medo, eu sei que o tive...felizmente os meus pais sempre me respeitaram mesmo quando me descobriram...é triste que Tiagos sofram.