Tinha ido comprar comida para os peixes e aproveitou para deambular um bocado pelas ruas de uma cidade à qual tinha voltado. O sol estava forte a fazer necessitar de óculos de sol. Uns óculos escuros que lhe ocupavam grande parte do rosto. Escuros como ele, naquele dia, estava. Escuro, todo de negro vestido, todo, da cabeça aos pés. Já há muito que não se vestia assim todo de preto e adorava. Adorava vestir-se de preto. Contrariamente à maioria das pessoas, não via no preto nada de negativo, pessimista, triste, carregado. O preto sempre foi, para ele, a conjugação de todas as cores. A junção das cores ditas básicas: magenta, azul cião e amarelo. Teoricamente, e em iguais quantidades, dariam o preto. Na prática, um castanho muito escuro. Mas ele queria lá saber disso. Para ele, o preto era o auge das cores. A única peça não preta, aliás, por opisição, branca, eram os fones do seu ipod, onde cantava Dolores O’Riordan, quem, nos últimos dias, tanto ouvia.
Ruas, edifícios, lojas, cafés e pessoas, muitas pessoas aquela hora, muitas pessoas… e ele.
Naquele dia tinha decidido vestir-se com uma miscelânea de cores. Estava sentada com as pernas juntas, sem saber o que fazer às mãos, para onde olhar. Se para o chão, se para aquela sala com aquele cheiro tão típico, se para o homem que, à sua frente, estava de bata branca vestido. Ali estava a querer controlar o corpo, os gestos, quando não conseguia controlar os nervos, a ansiedade.
O homem de branco olhava para o papel que ela lhe tinha levado, para o papel que tinha atirado para cima do sofá dias antes, com aparente indiferença, como se não fosse minimamente importante. Um papel dentro de um envelope que não abriu, não consegui. Era o que mais queria mas, “por vezes, não devemos fazer aquilo que mais se quer”, pensava ela. Tinha medo, sabia-o. Um papel com letras que podiam ditar a sua vida. E agora o homem de branco tinha-o na mão. “Curioso como uma pessoa de branco, uma cor tão angelical, tão alva, tão pura, tão saudável, nos pode tramar”, pensou.
O homem de branco olhou-a nos olhos, como já muitas vezes deve ter feito, desde que de branco se começou a vestir, desde que há muitos anos, se sentava naquela cadeira, naquela sala pequena. Olhou-a, suspirou e falou.
Saiu dali sem ouvir metade. Dirigiu-se ao balcão da rapariga simpática que lhe sorriu e pagou. “Na vida tudo se paga, tudo tem um preço, até para se saber de uma coisa destas. Paguei para vir aqui saber isto!” pensou. Entregou o cartão Multibanco, marcou o código e nem sabe quanto pagou. Naquele momento podiam ser 10, 100 ou 1000 euros. Que importava isso agora? Era dinheiro, só isso.
Desceu as escadas de degraus muito estreitos e desequilibrou-se. Naquela fracção de segundo tinha duas hipóteses: agarrava-se ao corrimão ou deixava-se cair. Agarrou-se. Desceu. Mas não desceu lentamente. Nuns 3 ou 4 degraus nem tocou. Abriu a porta que dava para a rua. Sentiu o ar quente a entrar até aquelas duas paredes que, de tão próximas, tornavam as escadas que tinha descido, tão estreitas.
Estava na rua. Uma rua também estreita onde não passavam carros, somente pessoas. E ali estavam elas. Muitas. Pessoas, lojas, cafés, na base de edifícios antigos, feios. Adolescentes de mochila ao ombro, aos grupinhos, senhores engravatados de barba muito aparada, velhotas com sacos vazios ou já cheios de compras, uma ou outra pessoa com o seu canídeo, enfim…pessoas. Pessoas nas suas vidas. Pessoas que ao fim do dia regressariam a casa para fazer o jantar, para dar banho e de comer aos filhos, para ver as 5 novelas seguidas, para fazer os tpc’s, para estudar, para o que for. Pessoas nas suas vidinhas que consideravam, quase sempre, medíocres. Sabiam lá elas!
Encostou-se à parede velha e descascada, com restos de papéis colados, que ali estava mesmo a pedir as suas costas. Caras tristes, discretas, velhas, novas, frescas, carregadas, divertidas, sorridentes, era o que via. Mas cores, cores era o que mais via. Não as da sua roupa, mas as que giravam à sua volta, ou melhor, andavam da esquerda para a direita e da direita para a esquerda. Cores e cores. A uns metros dela uma cor. Preto. Um homem alto, jovem, vestido de preto. Tanto preto numa só pessoa, quando minutos antes era o branco que cobria toda outra.
“Cinzento, cinzento e mais cinzento”, pensou ele. “Esta cidade é só cinzento. As pessoas são cinzentas, o chão é cinzento, as paredes dos prédios são cinzentas, as ruas são cinzentas, as pessoas são cinzentas.” Tudo assim lhe parecia. Mas a uns metros, encostada a uma parede, com os pés juntos e as mãos atrás do corpo, estava uma panóplia de cores. Aproximou-se, afinal, ficava no seu caminho, disfarçando o olhar em direcção a tanta coloração junto daquela porta. Parou em frente ao corpo coberto de cores e olhou directamente para a mulher jovem. Era uma panóplia de cores nuns olhos escuros, negros, tristes, pesados, muito tristes. Ali, naquele momento sentiu que o preto, afinal, também assim o era.
O homem jovem de preto parou à sua frente e olhou para si. Lançou a mão ao bolso do casaco, tirou um aparelho de música preto, tocou num botão. Ia fala-lhe. Naqueles 4 ou 5 segundos ela pensou: “Afinal a explicação é simples, a vida é simples. Vive-se e pronto.” Olhou para o chão. “Deve conhecer-me, só isso. Não me lembro mas só pode ser isso. Anda, continua a andar, a sério, não quero falar com ninguém. Agora não, por favor. Ande, misture-se nestas cores todas, continue a sua vida” pensou ela.
- Desculpe, está bem?
- Como? Hã!? Ah, sim, sim. Tudo bem.
- Tem a certeza? É que está com uma cara…
- Pois…isto já passa, a sério. Obrigada.
- Peço desculpa, é que olhei para si aqui encostada e achei…achei que não estava bem.
-… Vou, eu vou, eu…soube agora que estou a morrer, só isso, nada de especial.
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4 comentários:
gostei mm muito do texto....mas ainda vou ficar a digerir durante + um bom bocado....e adoro o teu blog, muito bom gosto musical, visual e estetico!
estamos n mesma onda
p.p.
Mais uma vez, graduated fool, vais levar uma abada...
Aqui há poucos anos, procurei revestir-me de uma certa dose de seriedade: cara de puto e ordenado periclitante, tinha apenas a meu favor o carro familiar herdado do meu pai que me dava um certo aspecto de profissional bem estabelecido. Longe deste, era pouco o respeito que me votavam nas obras que visitava, dado que estava à mercê do fato e gravata dos profissionais com os quais contactava. Mas, fato completo e bacalhau ao pescoço, não me apetecia de facto... e descobri no preto aquela aura de seriedade de que tanto carecia. Assim, as minhas aquisições consequentes (sempre que o ordenado permitia... ir ao Campera) tinham uma coloração negra. Com a vantagem das peças de vestuário que comprava, de um classicismo à prova da passagem do tempo (tão depressa não as renovaria) identificavam-me, de certa maneira, com a classe profissional em que me inseria... demais, até. Classificado de "alternativo", vestido de igual aos restantes cromos meus colegas, foi com um certo pesar que tive de reconhecer que nada fazia por mim, para além de ter um aspecto de tristeza que condizia com o meu estado de espírito geral. Foi mau...
Alguém me disse que nos dias de hoje, para a nossa geração, a adolescência termina com o alcançar da nossa independência financeira. Não era ainda um adulto de facto... e que tal assumir o facto? Com um emprego estável, um ordenado certo (ao menos isso, longe de ser uma fortuna), pude substituir as peças de roupa "intemporais" (banais) por algo mais original... t-shirts coloridas substituíram as brancas, as calças de ganga voltaram, após tentativas frustradas de vertir tecidos "nobres" que se revelaram um gasto inútil de dinheiro, uma vez que raramente usava o dito uniforme. Uns ténis puma por 20 euros (uma descoberta) azuis com listas amarelas que ficavam a matar com uma t-shirt da mesma cor, outros ténis laranja, outra t-shirt da mesma cor e até reciclei um polo laranja, trazido há 14 anos da eurodisney, onde figura orgulhoso um rato mickey no lugar do crocodilo da lacoste... faltam os ténis verdes para dar com outra t-shirt, e não passo despercebido, é certo. A seriedade atingi-a com o meu vocabulário pleno de palavras caras (hehehe)e ao levantar a voz com quem me falta ao respeito, com umas caralhadas à mistura (herança do Porto).
De negro já anda o meu humor tingido, pró diabo a roupa da mesma cor...
Tesn mesmo que te dedicar à escrita.
Tu escreves muito bem. Concordo perfeitamente com o que o pedropina comentou.
Excelente.
Excelente.
Excelente.
É difícil digerir tamanha intensidade. Dá muito que pensar quase palavra a palavra.
Sobre a morte, a vida, as cidades, as pessoas, o frio do ser humano.
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