Tomou um banho rápido. Vestiu qualquer coisa e saiu de casa, sem antes dar de comer à Camila e ao Bruno. Ia conhecer a casa do irmão. Contrariamente ao que o irmão alguma vez supôs, este tinha comprado uma casa. Contratado, a pagar mota e carro, nunca pensou, mas tinha conseguido. Estava feliz pelo irmão. Um irmão tão diferente e distante e, ao mesmo tempo, tão semelhante e próximo. Era sempre estranho estarem juntos, mas sentia que se adoravam. Há anos e anos que cumprimentava o "puto" com um "Olá, tudo bem?". Há anos e anos que já não davam dois beijinhos na cara. Mas um aperto de mão era estranho entre os dois. Esboçavam um sorriso sentido e diziam qualquer coisa, pouco mais que isso. Mantinham uma certa distância no que concerne ao toque e isso, era estranho.
Os pais estavam contentes porque o filho mais novo tinha conseguido uma óptima casa, grande, espaçosa, ali perto deles, mas com alguma tristeza notória porque era o segundo filho que deixava de viver no bairro, ali tão perto do seu campo de visão, ali tão perto das saias da mãe.
Chegou a casa dos pais. O pai preparava-se para assistir a uma tourada na tv. Lá discutiram aquilo. Para ele, um espectáculo inadmissível. O pai com argumentos quase tão inadmissíveis. "As vacas leiteiras são para dar leite, os bois para puxar e os touros são para isto. É assim a vida!" Simples. Pensou: "Que pais estes! Tão diferentes de mim. Mais do que simples, são básicos, limitados." Em tempos, por vezes, chegou a ter ódio por isso, por ter uns pais tão campónios. Agora não. Eram assim, pronto. Não iriam mudar, ultrapassanda a casa dos 60. Além disso, porquê insistir em querer mudar as pessoas? Porquê desgastar-se com argumentos, justificações que sempre levavam a discussões, algumas que deixaram marcas que preferia não recordar. Eram os seus pais, amava-os e até tinha uma grande admiração por eles.
"Aquela mãe merecia uma estátua", pensava nisso tantas vezes. Por tudo, merecia. Viveu sempre em função dos outros, para os outros, a pensar no bem-estar dos outros. Fez tanto sem nunca ter obrigação. Nunca se preocupou com ela. A paga? Hoje parece uma mulher velha, desgastada, numa casa onde sempre viveu e de onde quase nunca saiu. Um esgotamento seguido de uma depressão pofunda que a acompanha há dois anos. Hoje está melhor. "A ver vamos com esta mudança de casa do irmão", pensou. Será que um dia se encontraria assim, até acabaria assim? Será que um dia estaria numa cama deitado, dias e dias, semanas e semanas a fio, no escuro, sem forças para sequer se mover, sem forças para falar, várias vezes sem sequer os filhos conhecer? Não. Não chegaria a tal. Tudo iria fazer para não chegar a tal. Além de que seria pior. Não tinha filhos e, muito provavelmente, estaria sozinho. Sem um companheiro ali ao lado, juntinho, nem que fosse para refilar. Sorriu. Ao menos o pai tinha aprendido a usar o fogão da cozinha.
Sentado no sofá, olhou para aquela mulher. Os olhos da sua mãe transmitiam: "os meus meninos, agora os dois, já aqui não estão comigo."
"Vá, mãe vamos a a casa do mano. Tu vens comigo e pronto, nada de coisas. Vens." Lá foram. O pai ficou a ver aquele espectáculo deprimente na tv.
A casa do irmão. Uma óptima casa, pensou e disse. Estava feliz pelo irmão. O irmão feliz pela sua opinião. A mãe mais feliz ainda. Antes, logo à entrada, a cadela mordeu na dona, a companheira de anos e anos do irmão. A sua primeira namorada a sério. E ele o dela. Desde miúdos. Sempre achou aquilo bonito, muito bonito.
A cadela, mínima, mordeu na dona que a segurava ao colo, para não morder na mãe dele, que sempre insistia em chegar-se à bicha, uma autêntica fera potectora dos seus mais que tudo, os donos. Sentiu-se feliz pelo casal, pelo irmão, mas sentiu-se sozinho, ao mesmo tempo.
A casa estava numa balbúrdia. Caixas, caixotes, panos, tecidos, móveis montados, outros à espera de montagem...o normal nas mudanças. Entraram no quarto do casal. A cama estava cheia de gente sentada. Amigos, mãe da companheira do irmão, a cadela sempre a rosnar e uma bebé. Novo tijolo a acrescentar ao seu muro de tristeza. Tantos amigos para ajudar. E ele que há meses, às vezes pareciam dias, se mudou sozinho, sem quaiquer ajudas. Noites e noites seguidas a tirar coisas do lugar, a encaixotar, a descer um prédio, a colocar no carro, a viajar sozinho numa autoestrada quase deserta, 3 a 4 viagens por noite, até ao sol nascer, altura em que ia para o trabalho. A tirar do carro, a subir o elevador, a colocar numa casa que já não sentia ser sua. Uma casa para a qual não queria voltar. Deixar uma casa que amava, que era o seu ninho. Noites e noites em que se sentiu um actor numa peça deprimente, triste. Aquilo que chorou durante todas aquelas noites. Ainda hoje não sabe como não teve nenhum acidente com o carro.
O irmão, esse, estava feliz. Tinha ali uma casa sonhada, a companheira que amava, a sua cadelita terrível, parte da familia e amigos. As mudanças de casa podem ser tão diferentes umas das outras, de facto.
Quando entrou no quarto lá estavam todos. A mãe da companheira do irmão levantou-se, deu-lhe dois beijinhos em forma de cumprimento e disse para a sua mãe: "Deixe-me dizer-lhe isto, já estava para lhe dizer desde a última vez que o vi. Mas que rapaz tão bonito que você aqui tem. Abençoado!" Abençoado? Ele? Não sabia se havia de rir ou dizer à senhora: "Cale-se, sabe lá o que está a dizer! Abençoado porquê, senhora?"
A cadela, que saltava constantemente para cima da enorme cama, rosnava a toda a gente, a ele não. Talvez pelas enormes parecenças com o irmão, seu dono, talvez porque nunca a chateou, como toda a gente fazia, não sabia.
A bebé, sentada em cima da cama, com um sorriso de felicidade extrema a esbracejar imenso, estendeu-lhe os braços assim que ele se aproximou. A mãe da menina exclamou: "Estranho, que giro, ela nunca faz isto a ninguém, fica sempre um bocado assustada com gente que não conheçe! Você vai dar um bom pai!" E pronto, o murro viu-se construído até quase ao tecto. De repente, dezenas de tijolos, em segundos, menos que isso, se amontaram e lhe pesaram a alma. Ele que sempre quis ser pai. Ele que já se havia quase convencido de que não o iria ser. Ele que preferia nem pensar nisso. Ele que já tinha nomes para os filhos. E ali estava a sorrir para uma menina tão pequenina que lhe estendia os braços. Não lhe pegou. Sabia que o mais certo era cair no chão ou deixar-se levar pelas lágrimas que lhe espreitavam nos olhos. Disfarçou e foi ver o wc da chamada suite. Até se vir embora não olhou mais para a bebé.
Despediu-se e saiu com a mãe.
- É uma boa casa, não é filho?
- É óptima, mãe, óptima. Eles fizeram muito boa compra.
- Pois foi. Agora estão vocês dois com a vida organizada e felizes, isso é o que me importa. eu quero é os meus filhos felizes e com saúde.
- Sim, estamos felizes e com saúde, não te preocupes.
A mãe sorriu. Ele também. Um dos dois sorrisos não era assim tão sentido.
Deixou a mãe em casa. O pai continuava a ver aquela porcaria na tv. Já um animal todo espetado se esvaía em sangue com uns paus cheios de cores a abanar no seu dorço já todo vermelho. As pessoas batiam palmas. Será que as pessoas gostam assim tanto do sofrimento alheio? Será que lhes dá mesmo prazer? Será que noutras situações, em que um animal irracional não está envolvido batem palmas interiores? Será que a infelicidade dos outros as faz sentirem-se menos infelizes?
Trocaram umas palavras sobre a casa e ele voltou para a sua.
Comprou tabaco. O café estava quase cheio de homens. Todos a ver a dita tourada em Elvas. Saiu o mais rapidamente que conseguiu. Subiu o elevador. Abriu a porta e entou em casa.
O Bruno e a Camila ali estavam. Ela com as suas miadas habituais, a espreguiçar-se com as patas dianteiras contra a parede. Ele com aquele ar querido que só dá vontade de agarrá-lo, apertá-lo e beijá-lo. Foi o que fez. Eram os seus bebés. Era uma parte da sua familia, aqueles que ali estavam sempre. Chorou com o pêlo branco encostado ao rosto e com pêlo azul-cinza a roçar-se nas calças. Eram a sua companhia, eram os seus meninos. Ainda assim sentia-se sozinho.
Despiu-se, atirou a roupa para o chão. Estendeu-se no sofá, acendeu um cigarro e preparou-se para começar a ver dvd's das 4 solteironas do "Sexo e a Cidade" e as suas aventuras com os homens, a suas buscas para encontrar um companheiro. Não era só ele que estava sozinho e isso, dava-lhe, de alguma forma, que até considerava parva e infantil, um certo conforto. A Camila deitou-se em cima do aquário, o Bruno junto ao seu peito.
E quando se achou mais descontraído e até relaxado, porque afinal, estando sozinho, podia fazer o que quisesse, podia ouvir a música que quisesse, comer o que quisesse, ver na tv ou no leitor de dvd o que quisesse, apercebeu-se que se tinha esquecido de uma parte importante: naquele episódio, e nos antecedentes, uma das moças estava noiva, outra vivia com um companheiro, tinha um cão e um gato e pensava ter um filho, outra procurava um homem rico e a outra tinha um namorado, além de que o seu "ex" queria separar-se da mulher para ficar com ela. "Porra", pensou.
Levantou-se e dirigiu-se à cozinha para preparar um capuccino.
Não vivia em Nova Iorque, não tinha um grupinho de amigos com quem estar todos os dias, não tinha um emprego que lhe desse muito dinheiro, não vestia Prada, Gucci e merdas que tais, não tinha mil eventos semanalmente, não achava as pessoas assim tão interessantes, não tinha um filho e estava sozinho.
Ao deitar água a ferver na caneca, pensou: "E agora? Já vivi o que a maioria das pessoas quer viver, já tive o que a maioria das pessoas quer ter. Já senti o que a maioria das pessoas talvez nunca tenha sentido. Ainda sou novo e já tive o que aquelas mulheres tanto querem ter, série após série... tanto procuram e eu nunca procurei, nunca desesperei para ter. Eu já tive, já vivi, já senti e já sei o que é. Talvez seja um sortudo! Serei?"
Pegou na caneca, dirigiu-se para a sala, estendeu-se no sofá novamente e teve pena daquelas 4 criaturas, enquanto ele próprio sentia uma profunda tristeza dentro de si.
Acendeu mais um cigarro e ali ficou horas e horas como se aquelas mulheres fossem suas amigas.
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5 comentários:
Apetecia-me estar ao pé de ti para te dar um grande beijo. Este post deixou-me emocionada...
A cada dia descubro mais uma preciosidade no teu ser.
E quando é que eu tenho o prazer de conhecer o Bruno e a Camila? Estou à espera. O gato dono já tive o prazer.
Porque agora me sinto particularmente ácido, vou destruir o teu post, tão pessoal e tão sofrido.
Agora, também me sinto só. E neste momento, como em quase todos, também penso num futuro inexistente. E como tal, na impossibilidade de ter uma sequência de vida como os ditos "normais" que têm poderes reprodutórios a que nós nos foram recusados.
Encontro-me... entre relações, como o desempregado que se encontra "entre empregos", e tal como este, já sou um desempregado de longa duração, que nem da segurança social pode beneficiar, ou seja, de uma certa inclinação para o que é casual e fortuito que ngane a solidão que por vezes se sente. Porque ás vezes estar sozinho também é uma vantagem, com a liberdade que isso acarreta. Mas nem sempre.
Pois já vivemos mais do que aquelas mulheres, pois já sentimos mais do que ela, porque pelo menos já amámos alguém, mas agora não, neste momento não. Deveremos estar felizes por ter vivido algo de rico? Mas se isso só nos faz miseráveis agora... seria preferível viver na expectativa de algo que nunca se irá conhecer, mas que ao menos nos previne de sofrimento. Nem por isso: a dor da expectativa é igual à da perda, com a agravante de que não houve momentos de felicidade intercalares.
Mas então teremos de considerar essa felicidade intercalada como um projecto falhado, uma vez que a felicidade é o objectivo e esta foi finita. Um disparate: procura-se felicidade infinita, algo que só é possível através da remoção dos lobos frontais (com a vantagem de ter acesso à segurança social que não nos será oferecida pela descendência inexistente).
Como tal, se a felicidade contínua não existe (o objectivo), teremos então de nos empenhar na procura, mesmo que esta nos saia furada de vez em quando (conduzindo à infelicidade).
Mas não podemos negar que enquanto procurámos, fomos felizes, quando essa procura coincidiu com uma relação que, muito infelizmente, não foi para sempre, mas pelo menos teve uma duração que foi sustentada por momentos de felicidade.
Eu, uma criatura sui generis, ainda não me sinto "em casa". Daí não me fazerem falta os filhos que associo à estabilidade. E também por ter uma caracter de um coelho assustado que produz repulsa ás responsabilidades. E talvez por isso adore os meus sobrinhos, e lhes pegue, e os beije, e sinta a falta de os ir buscar ao infantário como fazia todos os dias antes de ir trabalhar para fora da terrinha (o que não faz um tio e a sua profissão liberal).
A vida é feita de cedências, na sua maior parte relacionadas com as nossas expectativas, especialmente nos dias de hoje, em que ambicionar um ordenado decente é um sonho impossível. Os ideais de grandeza, sucesso, glória e fama, se alguma vez existiram, por lá ficaram, junto dos destroços da ética daqueles que vêm a falta de carácter como uma escapatória fácil para as agruras da vida.
Estou sozinho, não tenho uma casa, não tenho sequer um espaço em que me sinta "em casa", seja este um quarto, um edifício ou uma cidade. Mas vou ter de continuar à procura, pois pode ser é que encontre "alguém" que seja "a minha casa".
Um grande abraço
Como te disse,aprendi a viver em "apneia afectiva".Gosto muito da expressão!Fui eu que a inventei,diga-se a propósito.Em que consiste a "apneia afectiva"?Também já te expliquei.Acorda-se de manhã,inspira-se o mais profundamente que se puder,para reter,dentro de nós,a maior quantidade possível de moléculas de afecto que existem em suspensão na nossa vida,e mergulha-se em cada dia com a mesma determinação e agilidade com que uma Cecilia Bartoli faz uma escala ou uma cadência de um só fôlego.Tu já a ouviste cantar.Parece fácil,não parece?Mas,não é,de todo.Eu tenho a vantagem de ter estudado canto e de saber usar o diafragma.
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